Uma incelência para Waldick Soriano, único e eterno

Fui tomada por profunda tristeza egoísta com a morte de Waldick Soriano (13.5.1933 – 4.9.2008). Explico-me: o pior dos cânceres não é que podem ser incuráveis, mas a certeza de dores brutais, a exigir mais amiúde doses de morfina só para enganar a dor por

Prestei duas homenagens a Waldick Soriano. A primeira, na crônica ''O fascínio das músicas de cabaré'' (6.11.2007) www.mhariolincoln.jor.br/index.php?itemid=3860. A segunda, em meu recém-publicado livro ''Reencontros na travessia: a tradição das carpideiras'' (Mazza Edições), no trecho a seguir.


 



''Foi enterrada a minha tia cantadeira de incelências. Eu não a via há uns cinco anos. Mas quando soube que um câncer a consumia no fundo de uma rede, arrumei a minha mala e peguei um vôo até a cidade mais próxima de Grotões dos Bezerras, onde cheguei ao amanhecer. (…) Pude ficar cuidando dela quase dois dias, durante os quais quase não dormi. É que também não senti sono. Apenas um vazio por dentro, por saber que ela estava indo embora para nunca mais voltar.


 



Olhando aquela sepultura coberta de terra, não pude deixar de pensar que plantei ali uma das mulheres mais interessantes que conheci em minha vida. Negra, pobre e solteirona por opção. Tia Lali não foi enterrada, foi plantada. E a força de sua fé fertilizará aquele chão. Como pude ficar tantos anos sem vê-la, abraçá-la, deitar-me em seu colo? E ela jamais reclamou. Quando eu telefonava, dizia apenas: 'Oi, minha rosa, você pode estar no fim do mundo, como agora, mas não esquece a tia'. Jamais reclamou. Jamais chorou, embora eu sempre chorasse a cada telefonema. E ela ainda encontrava forças para me consolar e acalentar, mesmo de longe… Apenas dizia: 'Carregue a sua cruz. Deus dá o cobertor conforme o frio', mesmo sabendo que Deus era para mim muito distante e até complicado.


 



Gostava de dizer que não se casou porque nunca quis. E parece que era verdade, pois pretendentes não lhe faltaram. Todavia, ela não se interessou por quem a quis. Quando indagávamos por que não havia se casado, ela, que gostava de cantar e possuía uma voz maviosa, respondia sempre com a mesma música, 'Quem eu quero não me quer', de Waldick Soriano, cantor que ela amava:


 



''Quem eu quero não me quer/Quem me quer mandei embora/É por isso que eu não sei/O que será de mim agora/Passo a noite meditando/Revivendo meu castigo/No meu quarto de saudade/Solidão mora comigo''…


 



– Oh, tia, inventa outra. A vida toda só sabe responder cantando esta música horrível!


 


– Horrível nada, menina! É muito é da bonita. Um dia, quem não conheceu Waldick Soriano vai se morder de raiva porque ele é o cantor das multidões e da paixão, do amor que é tão grande e que dói quando a outra pessoa não quer.


 


– Noooossa, que horror! Arrume outra música. Esta é velha demais.


 


– Velho é o mundo, minha filha. Waldick Soriano é tudo de bom, já disse! Igual a ele, de voz que enche a alma, só mesmo Luiz Gonzaga, o Rei do Baião. E estamos conversadas.'' (…)


 



Eternizar Waldick num livro ambientado no sertão contemporâneo era uma questão de justiça. Não fazê-lo seria ignorância musical a engrossar o coro de elitistas, que chamam de ''música de pobre'' o estilo Waldick de compor e cantar as mágoas do amor, que são de um democratismo inegável. Atire a primeira pedra quem nunca teve  ''umas''. Tia Lali tem razão: ''Um dia, quem não conheceu Waldick Soriano vai se morder de raiva''.

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