Vai vendo…

Aí, vai vendo: no dia-a-dia a gente encontra um monte de cara que se queixa das suas limitações — falta de grana, falta de lugar pra fazer show, falta de tinta pra grafitar, falta de coragem pra ir à luta.

Japão, do Viela 17, me apresentou um grafiteiro que é o oposto disso: Edson Ramos é mais conhecido na comunidade de Mustardinha, em Recife, onde mora, como Lotto. Começou a desenhar com giz de cera na escola e adorava ver desenhos animados. Até um dia que assistiu a um filme que tinha um pessoal que desenhava nas paredes, e começou também a fazer desenhos nas paredes, sem saber que estava grafitando, difundindo uma cultura até então nova no nordeste e ainda desenvolvendo suas próprias técnicas.

Hoje Lotto vive, ou melhor, sobrevive, de aerografia: faz umas camisetas, umas esculturas, uns tags 3D e assim vai levando…

Tem outra coisa que não falei do Lotto: há dois anos levou dois tiros e perdeu o olho direito. Passou por uma cirurgia e, por negligência médica, foi operada a vista boa. Desde então, Lotto deixou de ver, mas continua enxergando muito longe.

"Somos o branco e azul no verde e amarelo, somos quadros bem pintados por um artista cego" (Thaide & DJ Hum).

O que mais me chamou atenção no Lotto foi o bom humor e o otimismo desse cara. Não do tipo que acha que as coisas vão melhorar. Ele é pé no chão, encara as dificuldades de frente, mas não é daqueles que fala que não vai dar certo mesmo antes de tentar.

Disse que no dia seguinte que perdeu a visão já estava adaptado e começou a aprender a ler em braile. Foi mais difícil — os pontinhos eram muitos pequenos. Ao mesmo tempo, com a ajuda de Roberval foi fazendo os mesmos exercícios que fazia pra aprender a desenhar, fazer círculo, quadrado, triângulo. Depois, foi juntando as técnicas: usou os pontinhos do braile nos desenhos, até chegar a grafitar, colocando durepox na parede.

Achei que ele desenhava de forma automática, igual a gente assina — o que já seria um exercício de coordenação grande. Queria que ele desenhasse alguma coisa que ele não tivesse desenhado antes, alguém a quem ele nunca tinha visto. Então, pedi pra ele desenhar a Patrícia, fotógrafa que estava comigo. Bom, confira você o resultado.

Ele contando: "Quando era criança, tinha um vizinho cego. Ele andava com um cinto branco com a calça erguida na altura do peito. Eu pensava: 'ele é cego, mas os outros vêem, tem que se cuidar, vai arrumar uma namorada só se ela também for cega…'".

Aí pensei em perguntar pro Lotto se ele sabia como estava vestido, mas o pessoal o chamou pra fazer uns freestyle e não deu pra fazer a pergunta. Lá, ele falou da cor azul da camiseta do Supermam, do boné branco e da bermuda jeans com que estava vestido, tudo sem perder a rima.

Perguntei das chances de voltar a ver e se ele fazia muita questão. Ele falou que sua irmã chegou comentando de uma reportagem sobre um gringo que voltou a ver através de uma pequena câmera de vídeo que fica acoplada nos óculos. Ele respondeu: "Pra quê? Esse negócio vai custar quanto? Uns 300 mil. Não tenho 300 mil, e se tivesse, ao invés de investir nisso, compraria uma casa, um carro, um galpão grande pro hip-hop, mas voltar a enxergar pra quê? Já me acostumei. Esse dinheiro serviria pra eu criar o Gustavo" (Seu filho de 7 meses). Segundo Lotto, o filho já dança breack e faz uns rabiscos com os lápis do pai. Tomara que nos próximos 7 meses comece a riscar uns vinis e a rimar com o morder na boca.

Ele é diretor e editor responsável pela Pixe Art, uma revista de grafite, que trata também de comportamento, cultura e outros temas. Conta com a ajuda de Doinho no dia-a-dia, nos grafitis e na revista.

E pra quem ainda duvida que o cara enxerga longe, dá uma olhada no que ele pensa do grafiti : "O grafiti tem que melhorar em tudo. Aqui em Recife aumentou de 96 pra cá, mas o comportamento dos grafiteiros me preocupa: uns, que conseguem a fama, discriminam aqueles que estão embaixo. A maioria não se preocupa com trabalhos sociais, muito menos passar o que aprendeu para os iniciantes. Digo isso porque sou um dos pioneiros, responsável, que fez com que o grafiti evoluísse. Aqui tem desunião entre alguns, o que é normal, mas o respeito dos grafiteiros antigos prevalece. Precisamos de informação sobre o que acontece lá fora. Não temos como mostrar que somos bons sem oportunidade. Precisamos de oportunidade da prefeitura, do governo do Estado e das ONG's.

Não porque somos do nordeste que devemos pagar pau pra aqueles que têm tudo na mão, como o Fat Cop, Canetão, Vidio. Nós não temos nada disso, mas fazemos tudo no improviso, e a qualidade fica no estilo policromia. Isso é pra vocês que duvidaram da nossa vontade. Vamos conseguir fazer todos os contatos possíveis com os escritores, artistas plásticos, grafiteiros, e donos de revistas de hip-hop. Temos qualidade pra mostrar lá fora que podemos representar o Brasil."

Lotto é do tipo que dá aula sem lousa, sem giz, mas com parede e spray. Valeu, professor, aqui está minha lição de casa.

Apoio: Japão, Doinho, Patrícia Spier, Patrícia Pereira da Silva e o próprio Lotto.

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