“Vício Frenético”: De mãos dadas com o tráfico

A entrega do tenente Terence McDonagh às drogas permite ao diretor alemão Werner Herzog uma análise do sistema policial, de sua relação com o tráfico, e a falta de limite entre um e outro.

Dos diretores do “Novo Cinema Alemão” dois se destacavam pela ousadia estética e conteudística: Rainer Werner Fassbinder e Werner Herzog. O primeiro faleceu aos 36 anos, depois de produzir exatos 36 filmes, Herzog continua a fazer filmes. Quem assistiu aos feéricos e contestadores “Aguire – A Cólera dos Deuses” e “Fitzcarraldo” talvez nem se dê ao trabalho de entrar no cinema para ver suas derradeiras criações. Uma delas, “O Sobrevivente”, sobre germanoestadunidense que lutou contra os vietnamitas num campo de prisioneiros, era abertamente reacionária, e passou batida. Ao que parece, ele perdeu o senso do cinema comprometido com os marginalizados do Primeiro e do Terceiro Mundo. E decidiu imitar seu compatriota Wim Wenders indo arriscar-se em Hollywood com resultados nem sempre satisfatórios.

Mas um vislumbre daqueles tempos pode ser visto no filme policial “Vício Frenético”, refilmagem homônima do que o estadunidense Abel Ferrara fez em 1992. Não que tenha a mesma inventividade, a ousadia ao tratar de temas como o colonialismo espanhol na América Latina em “Aguirre – A Colera dos Deuses” ou a obsessiva entrega do explorador alemão à travessia da selva amazônica levando um gigantesco navio em “Fitzcarraldo”. Seu último filme é mais controlado, mesclando ação e solo do tenente Terence MccDonagh (Nicolas Cage). No centro da trama, o esforço de uma equipe da polícia de Nova Orleans para prender os assassinos de uma família senegalesa, pós-Furacão Katrina. Como na ação da natureza, a estrutura física e psicológica de McDonogh também está destroçada.

Personagens de Herzog buscam o incontrolável

Tem-se, desta forma, um daqueles personagens de Herzog entregue obsessivamente a algo incontrolável – no caso dele às drogas, a ponto de chegar ao delírio, começando a ver crocodilos, iguanas e traficante dançando rap com maestria. A cada dia, ele vai se encurvando para o lado, assemelhando-se a um vampiro errando pela noite à procura de qualquer droga que amenize a sua dor. De quando em quando se religa procurando pistas que o levem aos assassinos da família senegalesa. Tal alheamento chega ao extremo quando perde a testemunha chave por estar se drogando. Daí pouco se interessa pelo que pode lhe suceder. Perdeu a noção de quem é; a busca dos culpados fica para trás – a investigação é mantida por Herzog quase em segundo plano, pois lhe interessa mais a entrega de McDonogh ao vício e as loucuras que as drogas o incentivam a fazer, inclusive torturando idosas.

Assim, o tema de “Vício Frenético” é a capacidade de o homem destruir a si próprio. McDonagh é arguto, ardiloso, truculento quando o argumento lhe falta. Tem, sobretudo, faro para caçar o criminoso e o fazer confessar. É daqueles profissionais que se entregam ao trabalho em prejuízo de sua vida familiar. Embora esta seja para ele apenas um prolongamento de sua dependência das drogas. Os demais policiais o respeitam e seu chefe o endeusa. Ele, no entanto, por um ato impensado sofreu danos na coluna e compensa as deficiências dos remédios que o médico lhe receitou com doses de morfina, que passa para heroína, cocaína, maconha, crack, o que encontrar pela frente. Torna-se um aspirador de pó e fumaça, que o faz entrar em delírio. Se apenas se concentrasse nele, o filme já mostraria Herzog em seu leito natural: o do homem dominado por sua natureza, sem dela poder escapar, a exemplo de Aguirre e Fitzcarraldo, numa espécie de determinismo oitocentista.

Senegaleses são os estigmatizados da vez

“Vício Frenético” é, porém, uma produção hollywoodiana com os bandidos já pré-escolhidos e estigmatizados. Aqui são os senegaleses se estruturando no tráfico de drogas pesadas nos EUA. Se não tem o glamour da Máfia de “O Poderoso Chefão”, tampouco deixam de viver com luxo, cercados de capangas, e são igualmente violentos. A quadrilha chefiada por Big Fate (Alvin Xzibit Joiner) é suspeita de ter massacrado a família senegalesa e o sonado MCDonagh é encarregado de resolver o caso. A investigação termina se transformando em sua perambulação pelos meandros do tráfico – e ele, ao invés de prender os traficantes, começa por achacá-los, tomar deles a droga ou consumi-la diante deles. Age como se fosse acima de qualquer suspeita, pois tudo que o achacado lhe acusar de ter feito se reverterá contra ele próprio.

Esta certeza da impunidade é que o faz andar em círculos pela cidade, saindo do baixo mundo do tráfico para o apartamento onde vive sua namorada Frankie (Eva Mendes), parceira no consumo de drogas. Eles se encontram não para namorar, mas para indagar o que o outro lhe trás. Entre uma visita e outra a ela, uma cheirada ou fumada pelos cantos da delegacia, ele se dedica à arte de interrogar sem usar da violência. Ilustrativa de seu tino é a sequência em que ele destrata seu parceiro Stevie (Val Kilmer) por estar maltratando o suspeito. Consegue fazer com que o pequeno comerciante senegalês lhe dê as informações que precisa. Porém, na mesma proporção com que deslinda os fios do crime, desce aos esgotos do vício.

Galeria de Herzog tem estranhos, vampiros e obsessivos

Numa sequência brutal ele transa com a traficante enquanto cheira a droga que dela roubou. Essa obsessiva entrega a um objetivo faz parte do perfil dos personagens de Herzog. Vai dos estranhos Stroszeck e Kaspar Hauser, passando pelo vampiro Nosferatu, até os obsessivos Aguirre e Fitzcarraldo (*). McDonagh ao longo do filme vai se entortando, tornando-se quase cadavérico. Seus olhos saltam, o braço fica preso ao corpo, numa mutação que muito exige do normalmente apático Nicolas Cage. Salvo quando esteve sob a direção dos Irmãos Coen no divertido “Arizona Nunca Mais” ou de Mike Figgs em “Despedida de Las Vegas”, vivendo personagem no limite do vício, papel que lhe rendeu um Oscar. Herzog o usa para passar ao espectador a metamorfose de McDonogh numa esponja ambulante.

Ele chega a não ter mais precaução alguma com o fato de seus companheiros, traficantes e controladores de resultados do jogo de basebol ter conhecimento de seu vício. Para satisfazer-se confisca qualquer droga, não incomoda de quem seja, não importa o lugar, tudo parece aos olhos de seus parceiros uma tática para ele prender os suspeitos e chegar aos executores da família senegalesa. Numa elucidativa sequência, ele convida o traficante a fumar maconha com ele e este se nega. Quando é levado à delegacia, tenta desmoralizá-lo, acaba percebendo que quanto mais fala, mais o livra da suspeita de ser também um viciado.

Ambiente de McDonagh tem favores e relações fugazes

Com estas sequências sobre o envolvimento dele, McDonogh, com as drogas, Herzog avança para os meandros dos favores e das relações fugazes entre policiais – um faz um favor ao outro e todos se enredam nas tramas dos pequenos delitos. Dá para perceber que Herzog não fala apenas de McDonagh, denuncia uma norma entre a corporação policial: de um livrar a cara do outro, encobrindo desmandos, furtos, consumo e tráfico de drogas entre eles mesmos. Fato confirmado pelo filho do político local que ameaça MCDonogh, quando este o ameaça de prisão, e depois lhe diz, na delegacia, que ele não precisa mais se preocupar, está tudo arrumado, nada existe de ruim mais entre eles. O outro policial o escuta e nada diz. Tudo estava realmente acertado.

O espectador brasileiro, acostumado a ver pela TV todo dia noticiais sobre envolvimento de policiais com o tráfico, a corrupção, assalto, roubo, dirá que não há novidade. O clima azulado que predomina ao longo do filme, dá a sensação de que o sistema de segurança vive no lodaçal e não há saída. Percebe-se isto quando Herzog se permite quase uma licença patriótica do ritual de promoção de McDonogh a capitão pelos bons serviços prestados à comunidade e à corporação, sendo apresentado pelo chefe de polícia como exemplo a seguir. E o espectador acha que está diante de mais um daqueles filmes em que o crime triunfa. Herzog logo retorna seu tema, a do homem entregue à sua destruição – mas é também uma critica ao olhar torto da corporação aos seus integrantes.

Mal do tráfico e da corrupção é reflexo da crise do sistema

De novo soa familiar, parece até tirado dos noticiários televisivos e das páginas dos jornais e revistas brasileiros: os policiais sabem onde estão os traficantes, convivem com eles, com os pequenos assaltantes de rua, muitos praticando seus crimes a poucos metros do posto vazio da polícia, nada fazem porque completam seus vencimentos através das ações deles, conforme já denunciado várias vezes. Alguém poderá dizer que “Vício Frenético” é um filme que cria a sua própria realidade. Verdade. Só que a arte se espelha na realidade circundante para refletir sobre as estruturas sociais do país, no caso os EUA, e estas, no filme em questão, não deixam de estar podres. Quando o risco chega a Frankie, sua mulher, McDonogh deixa de ser um viciado para virar um traficante. Está sob suspeita da corporação e faz agora serviços subalternos.

Ele muda sua forma de atuar, fica pior, maligno, começa a entrar em transe, ter visões alucinógenas. Confunde sua responsabilidade como policial com a necessidade de defender Frankie. Entra em conflito com a própria família. Por consequência fica num impasse, pois o espectador não sabe onde termina o policial, o viciado, e começa o traficante. E ele não está aprofundando as investigações para chegar aos culpados pelo massacre da família senegalesa. Entregou-se de vez ao vício. Transforma-se cada vez mais num personagem de Herzog. Este consegue equilibrar a trama policial com o caso particular dele, McDonagh, porque desligado de seus parceiros de corporação. Age agora sozinho, negociando com Big Fate, chantageando jogador de basebol para obter dinheiro, pegando droga de quem encontrar pela frente. Chega-se, assim, ao mal absoluto, conjugado com a descida aos esgotos, e, portanto, a entrega compulsiva ao vício.

Diretor não se desvia da decadência do policial

O espectador pode ficar perplexo com tal narrativa, centrada no protagonista, sem concessão a letreiro final de que se trata de ficção ou que exemplos iguais ao de McDonagh terminam por se redimir. Nem se trata de autopunição, daquelas em que o criminoso admite o erro para continuar vivo. Tampouco uma tentativa de mostrar que com bons salários, educação formal, treinamento com novas técnicas de investigação, armamentos, veículos e equipamentos modernos o tráfico deixará de penetrar o tecido da corporação policial e, portanto, da sociedade. Herzog faz, via McDonogh uma radiografia do sistema de segurança atual, seja do Primeiro ou do Terceiro Mundo.

Se “Vício Frenético” não o faz voltar à sua melhor forma, pelo menos o mostra com bom olhar para um dos males da sociedade capitalista: a corrupção endêmica, o tráfico livre e amplo, a completa inaptidão do sistema de segurança para cuidar do que lhe compete. A começar pela confiança e o respeito que deve ter do cidadão. Marx já dizia que a revolução só é possível quando as camadas sociais, principalmente o proletariado, já não acreditam na estrutura do poder dominante em que vivem. Talvez ainda não se tenha chegado ao fim do poço, mas os sinais estão bem visíveis.

Triunfo de McDonagh passa despercebido

Ao fazer “Vício Frenético”, Herzog usou narrativa com planos abertos, às vezes planos-sequência, para transmitir melhor o clima e as ações de McDonagh. Quase não há espaços para os demais personagens, inclusive Frankie feita pela latina Eva Mendes. Prevalece sua tendência de mergulhar no personagem principal e deixá-lo percorrer o filme até dominá-lo. O triunfo do trabalho de McDonagh, eterno clichê do filme hollywoodiano, passa quase despercebido, porque em nada contribuiu para sua mudança. Continua em delírio vendo agora não só iguanas passeando pelo tapete, mas um gigantesco aquário com tubarões, onde inala quanto pó ainda lhe reste. E termina justificando uma ida ao cinema para ver se Herzog conserva boa mão para filmes complexos e elucidativos.

“Vício Frenético” ((“Bad Lieutenant: Porto f Call New Orleans”). Policial. EUA. 2009. 121 minutos. Roteiro: William Finkelstein. Direção: Werner Herzog. Elenco: Nicolas Cage, Val Kilmer, Eva Mendes, Alvin Xzibit Joiner, Fairuza Balk, Tom Bower, Jennifer Coolidge.

(*) Aguirre – A cólera dos Deuses (1972), O Enigma de Kaspar Hauser (1974), Stroszeck (1977), Nosferatu, o Vampiro(1979), Fitzcarraldo (1982).

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