Violência em São Paulo: a guerra por trás da guerra

Permanece na população a idéia de que as autoridades não estão fazendo nada em relação ao “crime organizado”. Instrumentos legais não faltam para coibir delitos. O Código Penal, a Lei das Contravenções Penais e o próprio Estatuto da Criança e do Adolescen

Qualquer um que já assistiu a um filme de bangue-bangue sabe que o xerife era tudo nas pequenas cidades do Velho Oeste norte-americano. No meio do antro de marginais e desesperados, só mesmo alguém como o velho e bravo John Wayne para garantir a lei naquele fim de mundo. Passado mais de um século, a lógica dos xerifes continua sendo a única forma de lidar com a violência. Essa é a conclusão a que se pode chegar analisando as declarações dos membros do governo paulista em resposta ao levante aparentemente orquestrado pelo “crime organizado” no Estado de São Paulo. Esse ponto de vista decorre da visão do criminoso como um homem de negócios que compara um custo e um benefício antes de praticar um crime.


Segundo esse mito corrente nas avaliações que estão diuturnamente na “grande imprensa” nos dias que correm, o bandido faz uma avaliação racional do lucro potencial advindo de um crime e do risco de ser preso. Dependendo da relação entre uma coisa e outra, ele decide ou não ir em frente. Por essa lógica, quanto menor for a chance de ele ser pego, maior será a sua ousadia. Daí a tecla sempre martelada de que é fundamental investir em “policiamento” e “melhorar” o sistema judiciário. São ouvidos também pronunciamentos clamando por “reformas” no sistema penitenciário e “mudanças estruturais” na política de segurança pública. Alguns “especialistas” chegam ao ponto de calcular o custo do crime no Brasil — estimado em 10% do Produto Interno Bruto (PIB).


Considerável perda de bem-estar


A situação caótica dos complexos penitenciários e o crescente sentimento de insegurança nos maiores centros urbanos confirmam que, sem dúvida, reformas estruturais são necessárias. Mas uma análise cuidadosa dos fatos e a comparação do caso brasileiro com outras experiências internacionais indicam que as reformas mais prementes não parecem ser aquelas que vêm recebendo maior atenção desses “especialistas”. Em primeiro lugar, é fundamental entender o que faz do crime e da violência problemas tão críticos no Brasil, quando países com níveis semelhantes de desenvolvimento econômico não sofrem tão agudamente desses males. E que não haja dúvida em relação ao fato de que, realmente, este é um país extremamente violento.


Estima-se que em São Paulo algo em torno de 50 homicídios por ano são registrados para cada 100 mil habitantes. É um número próximo dos 60 registrados em Bogotá, numa Colômbia que se encontra à beira de uma guerra civil declarada. Quando comparado ao dos vizinhos mais próximos geográfica e economicamente, o desempenho brasileiro é ainda mais constrangedor: na Argentina são registrados cerca de 20 homicídios para cada 100 mil habitantes, enquanto para os chilenos esse número fica em torno de 5. Os custos sociais desses altos índices de criminalidade vão muito além da já considerável perda de bem-estar causada pelo medo e pela mudança de hábitos da maior parte da população.


Ligação simples e direta


Gastos excessivos em segurança privada e no sistema penal, vidas perdidas, sofrimento de vítimas, capital humano desperdiçado em prisões e patrimônios destruídos são alguns exemplos de custos sociais diretos gerados pelo crime. A pergunta que imediatamente vem à mente é: o que faz do Brasil um país tão violento? Ao contrário do que se pode pensar, a resposta fácil “subdesenvolvimento e pobreza”, usada tantas vezes para justificar as mais diversas mazelas da realidade brasileira, não parece se aplicar nesse caso. Estudos mostram que o número de crimes não apresenta nenhuma relação significativa com desenvolvimento econômico. Um fator que aparece como extremamente importante nesses estudos é a desigualdade de renda.


Países com distribuição desigual de renda tendem a ter níveis altos de criminalidade e violência. Explicações sociológicas e antropológicas são as justificativas mais populares para a relação entre crime e desigualdade, mas a teoria econômica oferece uma ligação simples e direta entre esses dois fenômenos: para a população mais pobre, aquela com maior probabilidade de se engajar em atividades ilegais, maior desigualdade de renda significa maior retorno financeiro e menor custo de oportunidade para o envolvimento em ações criminosas. O que significa, em última análise, mais crimes. Nesse sentido, o fato de o Brasil ser um dos países com maior desigualdade de renda no mundo, só ficando atrás de alguns poucos muito pobres, certamente contribui para os níveis de criminalidade.


A rua é um lugar de recursos


Se a desigualdade no Brasil fosse reduzida para o nível de países como o Chile, o número de homicídios para cada 100 mil habitantes cairia em quase 40%. E mais: se a desigualdade fosse reduzida até o nível de países como a Inglaterra, o índice diminuiria em mais de 55%. Cidades como São Paulo e Rio de Janeiro deveriam dormir a cada noite menos tranqüilas por conta, além da violência, dessa equação. Como resolvê-la? O problema poderia ser resolvido se essa pergunta fosse feita com olhos nas ruas mais movimentadas de São Paulo, onde a cada passo, em cada esquina, se vê um cenário de anarquia urbana e desrespeito aos mais elementares direitos humanos.


Famílias inteiras das periferias optam pela estratégia de morar, durante a semana, nas áreas centrais da cidade. Ali, eles encontram os meios necessários para sobreviver: chafarizes para tomar banho, vãos de viadutos para se abrigar, refeições distribuídas por entidades sociais e oportunidade para ganhar algum trocado, seja por meio de pequenos serviços ou pequenas infrações. Para essas famílias, a rua é um lugar de recursos. Para todos, o clima é de opressão coletiva. Tomar o ônibus de volta para casa, sem ter presenciado algum tipo de violência, é uma vitória diária. Trancados em seus carros, com os vidros fechados, muitos preferem suar em bicas a correr o risco de encontrar um cano de revólver saindo de um buquê de flores que tentam lhes vender.


A quem interessa o crime?


Por tudo isso, permanece na população a idéia de que as autoridades não estão fazendo nada. Instrumentos legais não faltam para coibir delitos. O Código Penal, a Lei das Contravenções Penais e o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente prevêem penalidades variadas para uma série de infrações. O problema não está aí. “É verdade que a deterioração dos laços sociais no Brasil nas últimas duas décadas decorrentes de políticas econômicas que não favoreceram o crescimento trouxe uma nuvem ameaçadora ao padrão tolerante da cultura nacional”, disse o presidente Luis Inácio Lula da Silva em seu discurso de posse. “Crimes hediondos, massacres e linchamentos crisparam o país e fizeram do cotidiano, sobretudo nas grandes cidades, uma experiência próxima da guerra de todos contra todos”, afirmou.

O presidente anunciou a decisão de colocar o governo federal em parceria com os Estados “a serviço de uma política de segurança pública muito mais vigorosa e eficiente”. “Uma política que, combinada com ações de saúde, educação, entre outras, seja capaz de prevenir a violência, reprimir a criminalidade e restabelecer a segurança dos cidadãos e cidadãs”, disse. Não se pode dizer que Lula foi bem-sucedido nessa missão — apesar de ela ser factível. A pergunta aqui é: a quem interessa o crime? O motim em curso no país certamente é conseqüência das condições desumanas a que são submetidos os detentos. No seu famoso livro Estudios Penitenciarios, a espanhola Concepción Arenal, falecida em 1893, afirma: “Não há criminosos incorrigíveis, mas incorrigidos”.


No Brasil, ninguém se emenda na cadeia


Ela reitera a clássica doutrina da Metanóia, responsável pela substituição da pena corporal (forca, açoites etc.) por privação de liberdade. Graças a esse conceito, conferiu-se uma finalidade ética à pena, que consistia na emenda do preso. Emenda por meio da compunção, da reflexão isolada, feita em cela do penitenciário. Daí a importação para o mundo laico do termo penitenciária, ou seja, antigo lugar de penitência em face da conduta desviante. Até a metade do século 20, a autora nunca foi considerada pelos franceses. Eles mandavam os seus condenados indesejados expiar a pena em Caiena, a Guiana Francesa, na dantesca “Ilha do Diabo”. Depois de 15 anos, um degredado, René Belbenoit, conseguiu fugir. Naufragou, mas salvou 13 quilos de manuscritos, produzindo o livro A Ilha do Diabo, publicado em 1937.


Na obra, ele detalhou as atrocidades perpetradas pelos agentes penitenciários e os conflitos entre facções criminosas. Depois de morto, acabou sendo plagiado por Henri Charrière, autor do livro Papillon (que serviu de base para o filme de sucesso que levou o mesmo nome) — mas que jamais esteve preso em Caiena. No Brasil, a doutrina da Metanóia e o pensamento de Concepción Arenal foram prestigiados a partir da Constituição de 1946. Assim, a pena privativa de liberdade, além da sua natureza retributiva (retribui o ato anti-social praticado pelo criminoso), passou a ter finalidade ética de emendar, ressocializar o condenado. No Brasil, é verdade, ninguém se emenda na cadeia. Ou melhor, os maus-tratos, antítese da condição necessária para a reeducação, tornaram-se regra nos presídios.


Alguma coisa parece estar se perdendo


Com isso, sempre aumentou o percentual de reincidência entre os egressos do sistema prisional nacional. Em São Paulo, é superior a 80%. Só esse dado indica o desvio da finalidade das prisões. A política penitenciária brasileira diariamente afronta o objetivo constitucional da pena. Favorece-se a lei do mais forte e as permanentes violações de direitos humanos. Numa radiografia: Estado desorganizado de um lado e presos organizados do outro. A troca sempre imperou entre os bandos e as autoridades penitenciárias. Não ocorrendo rebelião, vale tudo dentro das prisões. Com o crescimento do fenômeno da criminalidade organizada, os bandos passaram a controlar o sistema. E, no caso em curso, o “crime organizado” usa nas ruas o difuso poder de intimidação.


Nos últimos 20 anos, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE), cerca de 600 mil pessoas morreram assassinadas no Brasil. Entre 1991 e 2000, o número de assassinatos por 100 mil habitantes mais que dobrou. Alguma coisa parece estar se perdendo no Brasil. Uma versão freqüentemente usada para explicar a decadência dos valores é que milhões de brasileiros teriam trocado, nas últimas décadas, a pobreza decente pela miséria. Mais do que isso, esse contingente de esfarrapados teria passado a ser bombardeado com os poderosos apelos de compra da sociedade de consumo que está emergindo por aqui. É como se, de um lado, a nova lógica criasse nessa legião de excluídos sedes tremendas, e, de outro, a sociedade e sua velha estrutura não lhes permitisse satisfazê-las. 


O Brasil ainda é o país da impunidade


Como resultado, estaríamos divididos, cada vez mais, entre os que nutrem ódios de classe e os que lutam para sobrevir. Uns defendendo suas posições, outros agredindo porque já não têm nada a perder. Estaríamos alargando no Brasil o sentimento de que não pertencemos a um mesmo conjunto. A relação entre os grupos está cada vez menos racional; passa ao largo da inteligência, da capacidade de diálogo e de raciocínio. O próximo estágio pode ser o da desagregação social em sua face mais cruenta: o pobre sentindo muita raiva por se perceber confinado em uma posição inferior na pirâmide social; o rico achando que a solução mais eficaz para erradicar a pobreza do país é o extermínio dos pobres.


Outro problema é que a lei, no Brasil, sempre esteve a serviço de quem detém o poder econômico. De um lado, o Brasil ainda é o país da impunidade para quem goza de alguma influência econômica — e Miami continua sendo uma boa alternativa de exílio para muitos fora-da-lei bem posicionados. De outro lado, o Brasil é ainda o país da tortura medieval para quem não tem onde se socorrer. Como resultado, está disseminada pela sociedade a noção de que a lei não é igual para todos, de que a Justiça não é justa e de que a melhor maneira de se relacionar com a polícia no país é manter-se à distância. Contribuem para isso as notícias de que a polícia destrói provas importantes com a mesma facilidade com que planta outras falsas, de que agentes da lei sabem bater na exata medida em que não sabem investigar.


Desafios à frente são complexos


Há pouco foi noticiado que em nove dos principais Estados brasileiros 10% da força policial são acusados de alguma forma de crime (metade deles não tem nenhuma relação com abuso de força ou violência policial). Em São Paulo, 60% dos grupos denunciados por envolvimento no “crime organizado” possuem pelo menos um policial entre seus membros. E, mesmo abstraindo as atividades abertamente criminosas, a violência policial no Brasil é absurdamente elevada. Só a polícia paulista mata mais civis do que toda a polícia norte-americana — o que indica a prática de assassinatos sumários. A esse complicado quadro se soma a corrupção dentro dos presídios. O episódio dos celulares nessa rebelião veio mais uma vez confirmar o que há muito já se sabe: os líderes do “crime organizado” controlam suas organizações de dentro dos presídios.


É claro que os desafios à frente são complexos. Faltam políticas sociais adequadas para prevenir e lidar com o problema do menor carente, falta dinheiro para treinar e aparelhar melhor a polícia, falta um Judiciário ágil para julgar e sentenciar os infratores. Mas falta, sobretudo, condições políticas para enfrentar a questão. Não se pode negar que é essencial construir, e logo, um ambiente que permita a todo ser humano viver com dignidade. Devemos caminhar para adotar uma solução não somente assistencialista, em que o ideal é que cada brasileiro possa ter as ferramentas e as condições mínimas para se sustentar e prover seus familiares.



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