‘Vision”: Lições da natureza

Com título em duplo sentido, cineasta japonesa Naomi Kawase expõe a falta de visão dos viventes do século XXI diante da natureza ainda viva

A natureza continua a ser o intrincado e impenetrável território inacessível aos viventes do Terceiro Milênio. Cada tentativa de decifrá-lo termina por atestar o quanto estão longe de fazê-lo. Com esta abordagem nada simplista, a cineasta japonesa Naomi Kawase (30/05/1969) leva a pesquisadora francesa Jeanne (Juliette Binoche) à montanhosa região de Yoshino, no Japão, para desvendar a planta medicinal Vision. E ao invés de um choque cultural entre ela e o naturalista Tomo (Masatoshi Nagase), termina por torná-lo seu guia através da floresta ainda intocada.

Assim como em “Sabor de Vida (2015), que trata da retomada do bem viver por uma idosa, Kawase começa por dar duplo sentido ao título e ao tema central deste “Vision”. É ao mesmo tempo o nome da planta e da falta de visão dos viventes do Terceiro Milênio. É como se dissesse ao espectador: “Por mais que sejamos “bem informados”, não sabemos nada sobre os ciclos da natureza”. É assim que Jeanne se vê diante de Tomo. Ele é o guardião da vision na região cortada pelos trilhos do trem bala. E além dele existe apenas a igreja xintoísta, onde ele pode conviver por algum tempo com os outros fiéis, vindos de outras lonjuras.

É através deste inesperado encontro entre as culturas Ocidental e Oriental que Kawase abre o leque de seu tema central: a necessidade de se conhecer melhor a natureza. Não só isto, pois ao fazê-lo abre espaço para interagir com o outro, ou seja, o ser humano. Jeanne ao chegar interfere sem perceber nas afinidades e amizade entre a idosa Aki (Mari Natsuki) e Tomo. Cria-se assim outra vertente das relações humanas, não apenas a de amizade. E, a partir daí Kavase estrutura duas sub-tramas: I – A descoberta das múltiplas potencialidades da vision; II – A relação entre Jeanne, Tomo e Aki, não como triângulo amoroso, mas devido à solidão demarcada pela própria floresta.
 
A vision é inescapável mistério da floresta

O que atrai Jeanne é a planta vision e seus mistérios. Justo o que procura desvendar através de Tomo. E além disso, Kawase adiciona a estruturação dramática da solidão. Viver naquele ermo implicava afastar-se da civilização ou o que restou dela nestes vinte anos de Terceiro Milênio. Aki não é apenas a especialista na planta vision, percebia o quanto era árduo viver ali isolada. ”A felicidade está no coração de cada um de nós”, afirma ela. Era o preço para quem se isolasse naquele ermo no alto da montanha, cujo único vestígio da civilização é o barulho do trem-bala a quilômetros de onde vivia.

Kavase trabalha com estes fios dramáticos de forma a fazer o espectador captar a vastidão da floresta e seus vários ciclos. É ela quem dita o comportamento dos que insistem em usá-la para sobreviver. No entanto, enfrenta várias situações nas quais não consegue intervir. Ora é a chuva, noutra a mudança de estação ou o caçador a confirmar que viver ali é tão ameaçador quanto os veículos no meio urbano. Pode ser a fatal bala perdida. Tomo e Aki, por viverem ali por anos, se adaptaram ao ciclo da natureza, suas armadilhas e as formas de sobreviver sem afrontá-la.

Assim Jeanne entende que as potencialidades da vision derivam do meio onde ela se desenvolve entre a multiplicidade de árvores milenares. Ela mesma segue seu ritual cósmico porquanto só aparece a cada 997 anos, quase um milênio. E se anuncia para a geração de viventes no instante em que o próprio sol lhe cede espaço. É um tanto mística e criadora de ansiedades que Jeanne não consegue dominar. Tomo segue orientando-a, sem conseguir conter as ansiedades dela.

Kavase, por outro, não cria um círculo místico ao redor da vision, prefere prender-se às citações dele Kavase constrói trama intimista

O que permite a Kavase desenvolver a trama de forma intimista. Os movimentos dos personagens são lentos e se limitam ao essencial. E os diálogos não avançam seus estados psicológicos, o que pensam um do outro e como veem a chegada ou a interferência de Jeanne. Não só pelo modo como os japoneses interagem, sem fitar incisivamente um ao outro. Enquanto os movimentos de câmera e a iluminação, a cargo do diretor de fotografia, Yasuhiro Ota, criam a atmosfera eivada de dúvidas e inconstância. Basta um animal morto para eles se sentirem agredidos. E deste modo o etéreo se impõe e eles terminam por se isolar.

O importante é que os atores e as atrizes deste Vision compõem seus personagens de forma contida e interiorizada, sem elevar a voz. Deste modo permitem ao espectador ser tocado pelo que os japoneses enfrentam ao conviver com a francesa que mal entende sua cultura. A Jeanne da sempre ótima atriz francesa Juliette Binoche (09/03/1964) não é daquelas pesquisadoras a enfrentar a floresta, mas apenas de situar-se sem entrar em conflito com seus anfitriões: o japonês Tomo (Masatoshi Nagase) e a japonesa Aki (Mari Natsuki). E assim chega à visão da misteriosa planta.

O fato é que a floresta impõe a solidão a quem vive no meio que a compõe. Eles não a desafiam, pois correm o risco de serem tragados por seus supostos mistérios. Nem Tomo ou Aki estimulam Jeanne a sair para estudar a vision por si mesma. Pesquisas alguma realiza, apenas obtém as informações místicas de Tomo. São os ciclos da natureza que predominam no traçado de árvores milenares. Entretanto o que Jeanne busca não é desbravar sua imensidão, mas apenas decifrar os mistérios da vision. E Tomo não lhe revela o bastante para ela a desvendar ainda que seja pouco.

Desfecho é digno dos “filmes de mistério”

Por sua vez, a solidão cria outro tipo de relação entre Tomo e Aki e entre ele e Jeanne. Esta, a seu modo, se contém para não os afrontar. A interferência da solidão, porém, desmonta o que antes era estabelecido. Surge daí outro tipo de relação, não mais de companhia igual ao de Tomo/Aki. O desfecho desta construção dramática é digna dos “filmes de mistério”. E rende a melhor sequência deste “Vision”, ao desviar o espectador para a perda do que sustentava a amigável relação entre Tomo e Aki. E logo o vazio advindo da atitude dela em retomar seu caminho deixa o espaço ansiado por Jeane e Tomo, sem contudo, esquecê-la de vez.

O modo como Kavase estrutura e monta a sequência da caminhada de Aki e sua entrada no túnel põe em cheque o que ela representava para Tomo. Não só por sua experiência e idade, mas como sua companhia. De novo a proximidade ditada pela floresta que resulta em solidão. E a função da personagem Jeanne reforça a presença de ambas na trama. Tudo é muito sútil, pois Kavasse não expõe o que de fato havia entre Aki e Tomo. E o tratamento dado por ela às relações amorosas não são bem construídas.

O espectador pode imaginar que Jeanne ao trocar informações com Tomo termina por afastá-lo de Aki. Há mais vivacidade e interesse na francesa do que na japonesa. Deste modo a idosa Aki pode ser vista como “a mãe” que compartilha com o filho suas experiências com a floresta e em particular sobre a vision. Impressão a esboroar na emblemática sequência do túnel que pode ser vista como um salto para a eternidade. Ou uma elipse sobre a eternidade sustentada pela vision. É o que Tomo deixa antever em suas observações sobre o súbito distanciamento de Aki.

Ciclo da vision é de 997 anos

Já na terceira parte deste “Vision”, Kavase amplia seu tema para outra questão não menos impactante. Há certo erotismo em algumas sequências, mas de forma não explicita. E leva o espectador ao primitivismo nas bem construídas sequências em flashback no meio da floresta. É como se de repente, a mulher pudesse realizar o parto no meio do mato sem o auxílio de ninguém. Ela o faz sozinha de cócoras como as indígenas. É o grande instante do filme, pois o ser vivente volta aos seus primórdios. E Kavase o desenvolve na semiescuridão e a câmera a flagrar o instante, É o naturalismo a revelar o ciclo da vida na floresta.

É a capacidade de Jeanne se ver na mesma situação que discute. Enfim é sua condição de mulher que ela trata sem rodeiros. Situação eivada de realismo a brotar de uma mente a perder seu elo com a civilização. Kawase, porém, não insiste neste flashback. Deixa ao espectador a reflexão sobre a intocada floresta, onde a vision cumpre seu ciclo de 997 anos para retornar ao seu meio e o encontra ainda intocado. E com apenas uma diferença. O voraz capital não conseguiu que a chamada “civilização ocidental” devastasse seu habitat natural. O que é um grande avanço.

Vision.(Vision). Drama/Ecologia. Japão/França. 110 minutos. 2019. Ficha técnica: Trilha sonora: Makoto Ozone. Edição: François Gedigier/Yochi Shibuya. Fotografia: Yashuhito Ota. Roteiro/direção: Noami Kawase. Elenco: Juliette Binoche, Masatoshi Nagase, Mirai Noriyama. Kazuko Sheracawa, Mari Natsuki.

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