“Volver”: Segredos e vinganças

Mulheres dominam filme do diretor espanhol Pedro Almodóvar, que foge às revelações bombásticas sobre suas ações e comportamento humano

Há nos filmes do espanhol Pedro Almodóvar uma simplicidade que reforça o que se vê na tela. Nada ali parece arrumado, montado para parecer natural. Tudo transcorre sem surpresas, cena após cena, mesmo nos instantes em que há maior dramaticidade. O espectador tem a sensação de que aquilo que acontece é necessário, pois algo grave aconteceu e a reação dos personagens não poderia ser diferente. Em “Volver”, seu último filme, isto está mais evidente do que em seus filmes anteriores. Logo na cena de abertura, ouve-se o canto que embala o ritual de lavagem de túmulos na região da Mancha natal do diretor. As mulheres cumprem a tradição sem lamentos ou nostalgia: é assim, porque é assim que se faz há séculos. Mas é nesta aparente simplicidade que se concentra o encanto deste “Volver”, voltar, regressar em português.
          


O volver de Almodóvar é realizar um filme circular em que os fios vão se prendendo ao longo do enredo até se fecharem de forma natural, sem surpresas. O que trai, sem dúvida, as regras do melodrama a que o espectador está acostumado. Espera-se, para este gênero em que ações e emoções são exageradas, que se cumpra estruturas, normas, até o desfecho, com os personagens tendo o destino que deles se espera. Em “Volver”, Almodóvar desconstrói o melodrama, a partir do momento em que a música não acentua as seqüências, pelo contrário as pontua, com naturalidade. O espectador absorve o que lhe é mostrado e se deixa envolver sem grandes reflexões. Uma das convenções do gênero é justamente o contrário, ele se deixar levar pela emoção, ser tocado pelo drama do personagem quando sua tragicidade explode na tela como uma punição pelo que praticou moral e éticamente.


          
Segredos dominam drama dos personagens


         


Almodóvar, amante dos dramalhões mexicanos e do cinema do diretor austríaco Douglas Sirk (“Palavras ao Vento”), não deixa, no entanto, de manter as características quase despercebidas de suas influências. Estão nas lágrimas, nas roupas, nas reações de Raimunda (Penélope Cruz), nos segredos que ela, Agustina (Blanca Portillo) e Irene (Carmén Maura) escondem, e, principalmente, nas ações desmedidas que têm frente aos obstáculos que a vida amorosa e a vida lhe impõem. Principalmente em Raimunda, servente de lavanderia, mãe de filha adolescente, obrigada a conviver com algo que lhe muda a vida, mas não a impede de ir em frente, com grande desenvoltura, tirocínio e manejo dos negócios. Ao deparar-se com o que a filha termina de fazer, não há lágrimas, gestos desmedidos ou efeitos trágicos, só a necessidade de resolver uma situação em si complicada, mas não irremediável.
         


Nestas seqüências toda a perícia de Almodóvar se impõe e o filme que poderia se transformar num drama-policial, é mantido sob controle. Não descamba, como acontece em filmes hollywoodianos, para o drama-policial com culpados e vítimas. Pelo contrário, torna-se surreal, com a presença incômoda de um cadáver que há todo momento lembra ao espectador que, embora Raimunda e Paula, sua filha (Yohana Cobo), tenham algo com ele, a ele não se prendem. Raimunda subverte a situação enveredando para os negócios. Almodóvar a faz escapar à culpa, à moral, à ética, à crise de consciência católica, uma vez que também o espectador não exige dela nada diferente. Se o cadáver é incomodo é para o espectador, acostumado ao surgimento da polícia, da lei, para levar alguém à justiça pelo ato cometido. O riso estabelece os limites entre o real e o inusitado da situação. O contexto, porém, é outro: é como Raimunda, penalizada pela falta de dinheiro e vivendo uma oportunidade única de ascensão social pode deixar escapar àquele momento por causa de um miserável marido morto?


          


Assassinato visto como fato banal


          


Claro que ninguém se importa com o cadáver. Principalmente se é o cadáver de alguém que cometeu um ato imoral, brutal contra a mulher. Sim, porque em “Volver”, Almodóvar trata, mais uma vez do universo feminino, das mulheres comuns, de sentimentos simples, diante das adversidades às quais reagem de acordo com o que lhes é imposto. Raimunda, numa magistral composição de Penélope Cruz, longe dos enredos rasos de Hollywood, consegue soltar-se, entender os sentimentos da filha e dela tornar-se cúmplice. Uma cumplicidade de mulher e de alguém que também guarda um segredo, que a torna refém da situação vivida pela filha. Este é um dos traços do melodrama mantido por Almodóvar: o do personagem que tem que ajustar contas com sua própria vida. Caso idêntico ao de Agustina, às voltas com uma doença que a faz tentar puxar um dos fios rompidos de sua vida.
          


É dela uma das cenas hilárias do filme. Numa visita de Raimunda, de Paula, de Sole (Lola Dueñas), irmã de Raimunda, ela, Agustina, oferece maconha a ambas. Elas recusam, principalmente Raimunda. Ri-se da recusa e também da maneira como Almodóvar trata a questão: conservadora a princípio, mas que depois se revela no contexto da situação de Agustina, dando a entender a dimensão de seu drama, da  condenação a que está submetida e da justificativa que ele, Almodóvar, lhe dá para suportar a dor irremediável provocada pela doença. Torna-se, desta forma, polêmico, dado que é comum hoje em inúmeros filmes cocaína e maconha rolarem aos potes, sem contexto ou justificativa alguma. Os personagens agem daquela forma apenas por moda, recurso dramático ou simples vício, que a nenhum beco sem saída leva. Agustina, assim, é um personagem trágico, que se mantém ético, embora tivesse razão para derramar-se e punir a quem lhe causa dor.
               


Homens são figuras apagadas no filme


              


Vê-se que Almodóvar manteve seu registro de drama elevado, sem exacerbação. Nada é demasiado, como já notado. Sobram ácidas observações sociais, raras em seus filmes normalmente debochados (veja “Pepe, Lucy, Bom”), sobre a Espanha de hoje. Mesmo com a propaganda de país de Primeiro Mundo, tem suas contradições. Sole, para sobreviver depois de abandonada pelo marido (sim, os homens são figuras apagadas e execradas em “Volver”), vale-se de expedientes. Mantém um salão de beleza em casa para não pagar impostos. Coisa típica de Terceiro Mundo, que Almodóvar mostra, existe também em seu país. É neste salão improvisado, onde mulheres buscam se rejuvenescer que Sole, Paula e Raimunda vão se encontrar e fechar os novelos cheios de fios de suas vidas. E Almodóvar revelar como tecer tradições, mitos e crendices do povo de sua região e os transformar em fantasmas com os quais as mulheres de “Volver” convivem.
              


É neste instante que ele, Almodóvar, desconstrói sem grandiloqüência o melodrama. As tensões iniciais são invertidas por ele. Os fios são puxados de forma a fechar círculos inesperados, de forma normal, sem emoções transbordantes, mas não menos dramáticas. Contribui para isto o quinteto de grandes atrizes, que fazem seus personagens agirem com naturalidade, em meio ao redemoinho que suas vidas acabaram se transformando. É como se Almodóvar dissesse: as situações é que são trágicas, exacerbadas, não as interpretações, a acentuação da música, a imposição do diretor. Não se pense que “Volver”, diante do exposto, é um filme de fácil digestão. Almodóvar não retrocedeu na escatologia, nos palavrões, tampouco em revelar seres humanos em atos muito íntimos. Não fosse assim perderia a graça, justamente ele, conhecido pelo comportamento exagerado de seus personagens, dos choques culturais e da defesa aberta das relações entre seres do mesmo sexo.


            


Mulheres dão a tônica do enredo


             


De qualquer forma, “Volver”, mesmo sendo um filme de Almodóvar, é uma obra para um público acostumado a desconstruções, tratamento sutil de questões contemporâneas e ao universo não bergmaniano das mulheres. Suas mulheres são resolvidas, se é para sofrer, sofrem, se é para agir, agem, se é para mostrar-se, se mostram, cheias de culpas e ressentimentos. Mesmo sendo classe média preservam o ar de mulher do povo, daquelas que fazem tudo para conquistar seu espaço, sem, contudo, se submeterem aos homens e a convenções burguesas. Têm um senso ético como Agustina, mas cobram alto preço por isto. No entanto, o cinema de Almodóvar não é popular no sentido de atrair multidões, coisa também rara hoje. Às vezes, como em “Fale com Ela”, é um cinema burguês, com dramas circunscritos a um segmento social que não se envolve com problemas comuns àqueles que estão na base da pirâmide social.
             


Em “Volver” há, no entanto, espaço para a transgressão a partir do instante em que toda a tragédia não é resolvida pela linha da culpa ou da punição, sim pela compreensão de que o que foi feito tinha de ser feito. É como se fosse um ajuste de contas entre familiares, devendo, como diz Agustina, ser resolvido entre os pares, sem a intromissão de terceiros, muito menos da religião ou da polícia. No atual estágio do cinema em que o crime é conseqüência do desvario, da falta de criatividade e do oportunismo mercadológico, dar sentido a ação violenta dos personagens e não levá-los ao confessionário é escapar ao estereótipo. Notadamente quando o roteiro, do próprio Almodóvar, fecha as janelas abertas, puxa os fios soltos e revela os círculos encobertos de maneira natural, para surpresa do espectador ansioso por um desfecho melodramático. Não é pouca coisa no universo do cinema  feijão com arroz de hoje.


 


“Volver”, Espanha, 2006, Comédia-dramática, 121 minutos. Roteiro/direção: Pedro Almodóvar. Elenco: Penélope Cruz, Carmén Maura, Lola Dueñas, Blanca Portillo, Yohana Cobo.

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