“Zona do Crime”: Cercados por suas vítimas

Em seu segundo filme, o diretor mexicano Rodrigo Plá analisa o comportamento dos moradores de um condomínio-fechado na Cidade do México e as conseqüências das regras que querem impor aos que moram a seu redor, inclusive à polícia que tenta investigar os c

Na maioria das obras de arte, dignas desse nome, o final costuma ficar em aberto. Cabe ao espectador encontrar a saída lógica para o desfecho proposto pelo diretor. Muitas vezes não se chega à explicação alguma e nisso se constitui seu enigma, pois não se deve tentar buscar qualquer entendimento sobre a vida em si, a partir apenas dos dados conhecidos. Inúmeros fatos, impressões e ações objetivas e subjetivas terminam por influenciá-los. Muito já se escreveu sobre a palavra “Rosebud”, no fecho de “Cidadão Kane”, e sobre a portinhola se fechando atrás de John Wayne, em “Rastro de Ódio”, e a nenhuma conclusão se chegou. Em “Zona do Crime”, o mexicano Rodrigo Plá, acrescenta mais um criativo elo a esta corrente, com um final circular, que à medida que avança vai enovelando dados sobre a realidade político-social atual e o beco sem saída em que se meteu a burguesia de todas as latitudes.
                  



Não se trata, porém, de desamarrar os nós dados ao longo de narrativa, como se um quebra-cabeça tivesse sido montado pelos roteiristas Rodrigo Plá e sua companheira, a escritora Laura Santullo, em cujo conto é baseada a história, mas de torná-la ainda mais chocante. Nada ali se assemelha ao já visto, o desespero toma conta dos envolvidos na trama, encadeada de forma a que cada um deles não se movesse mais para levar adiante sua busca. Apenas um deles vai de encontro ao que lhe parece certo; embora nenhuma certeza tivesse do que pudesse ser o correto. Plá e Santullo parecem não querer dar ao espectador a certeza de que aquela tragédia encontraria um final explicável e aceitável para os mais diversos segmentos de público. Ele, espectador, que se vire com as contradições e a realidade que o circunda e a desvende.



               



Falsa harmonia esconde a doença dos condôminos


                



Nenhum deles deve estranhar a forma encontrada pelos roteiristas para atirar sobre ele, de forma bem estruturada, o cotidiano que ele sabe existir e dele participa, mas procura ignorar.  “Zona do Crime” trata da inconvivência (se é possível criar esta palavra) entre a burguesia e a alta classe média moradoras nos condomínios fechados o proletariado e os lúmpens que habitam seu entorno. O filme é aberto em panorâmica, que avança para os sobrados, com jardins bem tratados se exibindo numa tarde de sol. É como se lhe dissesse: vamos ficar por aqui para ver o que se passa neste condomínio-fechado. Tudo ali está no lugar: as ruas limpas, os meio-fios bem pintados e os belos automóveis têm de parar ao sinal da garota-sinaleira até os garotos em seus uniformes grená passarem em direção à escola do próprio condomínio-fechado. Uma espécie de “vila” de bem consigo mesma.
                   



Esta suposta harmonia, comum neste tipo de habitat, esconde a doença dos moradores, como se tratasse de um filme de terror psicológico. Nada ali, como se verá em seguida; é normal. E nisso se constitui o grande achado da dupla Plá/Santullo: pegar um agrupamento humano, cercado por altos muros com sobrados germinados decorados nos mínimos detalhes para dar a impressão de saúde, equilíbrio e ascensão social, e desvendar-lhe, aos poucos, as entranhas, a mente e o comportamento. A forte cor da abertura em panorâmica vai, devagar, sendo substituída por um pálido cinza, com tonalidades púrpura e rubra. Os rostos que surgem estão angustiados, temerosos de revelar suas reais condições – uma paranóia que termina por desvendar o desequilíbrio de cada um dos participantes do agrupamento humano. E com outro detalhe não menos condenável: quer lhe dar a chancela de algo feito para manter a sanidade e a tranqüilidade e o patrimônio do grupo.


                    



Todos são culpados, mesmo que não tenham participado da tragédia anunciada
                    



Quando a narrativa avança, o choque inevitável já ocorreu, os tons escuros, a apreensão, a angústia já tomou conta de personagens e espectador. Então, toda aquela harmonia inicial começa a desmoronar. O jardim já não é jardim, é tão só arvoredos e floreiras, as casas não são casas, tão só esconderijos onde cada um dos membros do agrupamento humano tenta se abrigar. Como nos enredos policiais de Agatha Christie, todos são culpados, mesmo que não tenham se envolvido diretamente na tragédia pré-anunciada. Tudo começa com a queda de uma torre de televisão sobre o muro eletrificado, no momento em que três homens e uma mulher estão na expectativa do que lhes apresentará a vida, em si miserável. Eles são moradores do aglomerado que sobe morro acima, com seus barracos de tijolos à mostra, um agarrado ao outro, como se temessem ser despejados ladeira abaixo. Diante deles, imponente, está o condomínio-fechado, com suas câmeras, cerca elétrica, guarda em guarita e a central-olho que tudo grava e a todos espiona.
                     


 


Os três homens, um deles, Miguel (Alan Chávez), 16 anos, entram no condomínio-fechado, desencadeando a tragédia que virá a seguir. Ela, no entanto, é o que menos importa. Vale aqui a maneira como Plá a revela. Uma vez desencadeada, ela irá impulsionar uma série de conflitos, choques e dúvidas, que terminará por desmascarar os que nele se enovelaram em nome da autonomia e do direito à segurança. Eles, como responsáveis pela gestão de seu habitat, querem aplicar as normas por eles criadas, à margem das leis existentes, para equilibrar as relações entre os mais diversos condôminos. Esquivam-se de se submeter inclusive à investigação do delegado Rigoberto (Mario Zaragoza, brilhante) e fecham-lhe todos os espaços possíveis. 


                     


 


Condomínios-fechados criam regras paralelas às do Estado


                     


 


Está-se, desta forma, diante de uma realidade comum à Cidade do México, onde se passa a ação, e aos grandes centros urbanos do planeta, Brasil, inclusive. Espécie de Alphaville, em São Paulo, igualmente sofisticado e impenetrável, dada à ojeriza que seus moradores têm ao contato com os que não se lhe equiparam. Criam estruturas paralelas, à margem do Estado, com normas próprias, que supostamente lhes dão direito de aplicá-las sem obediência às Constituições Federal e Estadual, e à Lei Orgânica do Município. E têm seu próprio aparelho de segurança para agir quando “ameaçados” pelos proletários e lúmpens que os rodeiam, a partir de seus aglomerados. São contra eles, enfim, que erigem suas fortalezas, cópias tardias dos burgos da Idade Média. Faltam-lhes apenas os lagos e as pontes suspensas para completar o quadro.
                     



Os burgueses de “Zona do Crime” ao consumar a tragédia anunciada se dão no direito e contorná-la usando seus costumeiros truques: suborno, pressão, desobediência, ameaça, perseguição, execução. Queda alguma têm para a reflexão. Tampouco a dupla Plá/Santullo a exige deles. Não seria demais dizer que na estrutura capitalista globalizada em que a tecnologia multiplica a produção, inundando o mercado com milhões de produtos, a burguesia usufrui altos lucros, tornando-os investimentos especulativos, que, depois, alimenta a si próprios. Os altos dividendos recebidos são reinvestidos, num efeito circular, e os salários comprimidos, evitando que operários deles tirem proveito e os lúmpens possam transitar de um segmento a outro da estrutura social.
                    



Diante disso, eles são empurrados para os aglomerados da periferia ou mesmo áreas centrais (vide Belo Horizonte), sem infra-estrutura urbana condizente, sendo vítimas de uma vida sofrível. E, desempregados, habitando barracos paupérrimos, contemplam todo dia os condomínios-fechados, que lhes parecem o paraíso – e assim mesmo são vendidos em luxuosos anúncios na televisão, jornais e revistas. Desnecessário dizer que estas imagens se transformam em objeto de desejo dos burgueses e neles, operários e lúmpens, o anseio de se apropriar do que lhes é mostrado como resultado acabado do bem viver. Os três homens que ultrapassam o muro se integram a este grupo. Fazem parte da eterna luta entre possuidores e despossuídos: e eles queriam jóias e o que mais fosse possível. O que vem depois atesta a eficiência de Plá para, sem análise de luta de classe, traçar um perfil da burguesia e da alta classe média mexicana, sem descer a detalhes semelhantes aos tecidos aqui.


                  



Filme mescla drama, policial e suspense


                  



Plá engendra uma narrativa em que se mesclam o drama (identificação do proletário Miguel com o também adolescente Alejandro, filho do pequeno burguês Daniel), o policial (o conflito entre os proletários, o delegado Rigoberto e os pequenos burgueses) e o suspense (a tentativa de fuga de Miguel e a busca que se lhe empreendem os moradores do condomínio-fechado noite afora). Ainda assim, “Zona do Crime” termina por se transformar num thriller bem armado, com instantes de completo desnorteamento dos personagens e espectador. À medida que a narrativa avança, o clima se adensa e os tons antes bem definidos se tornam sombras que se movem, num claro-escuro que identifica o estado de espírito dos personagens. Vão da crise de consciência do velho que se vê diante de um crime à angústia de Mariana (Maribel Verdú), mulher de Daniel (Daniel Giménez Cacho) e mãe de Alejandro |(Daniel Tovar), que entende a tragédia em que todos se meteram e não querem enxergar. Estão apegados a algo que não se sustenta e não querem admitir, pois colocaria abaixo todo arcabouço por eles montado para manter distantes proletários e lúmpens, mantidos nos aglomerados por sua conta e risco.
                   



Não bastasse este painel, a dupla Plá/Santullo acrescenta-lhe outro, não menos significativo: o da corrupção na estrutura da polícia. Com argumentos semelhantes, os policiais se equiparam aos pequenos burgueses do condomínio fechado. Estes, acostumados a fazer o que bem entendem; segundo suas próprias normas, oferecem aos policiais à costumeira “contribuição”. Um dos investigadores se vale do manjado argumento de ter família para por “as mangas de fora”. Seu chefe maior, o delegado geral usa também o batido chavão de tranqüilizar a todos, desde que seja feito um acordo benéfico para o caixa dos responsáveis pela investigação. O Estado aparece com sua face neoliberal, que privatiza tudo, inclusive a aplicação da lei, que passa a ser de acordo com a visão particular, privada, de parte dos membros da estrutura de segurança, em que o benefício, o lucro, vai para o bolso de quem deveria coagir comportamento igual ao dos moradores do condomínio-fechado.


                   



Condôminos tentam dar “agrado” à polícia


                   



A apropriação de parte do montante acumulado pela burguesia não é feita pelo Estado, na forma determinada legalmente; quem tem poderes para fazê-lo, apropria-se em seu nome e dos membros da corporação que aceitam o “benefício” em prol da tranqüilidade de quem gerou o desvio das funções desse mesmo agrupamento policial, que nele não mais acredita. Plá reforça esta idéia ao longo do filme. O faz usando elipses, mostrando as conseqüências para quem acreditava na estrutura de segurança e para os que nela só acreditam, depois de suborná-la. As conversas se dão pela metade, entre olhares, gestos e, se necessário, explicitas ameaças ou consumada violência. Mesmo os que, integrando a estrutura de segurança, querem torná-la respeitável, são pressionados a se calar e dela tomar parte sob pena de sucumbir como acontece com quem a ela resiste.
                  



Em dado momento, o espectador tem a sensação de que assiste a um filme nacional, tal a identidade entre México e Brasil. As mazelas são as mesmas, a impunidade assemelha-se, e os rostos em tudo são idênticos. Diferenciam-se apenas quando transitam para os três homens, em particular para o garoto Miguel, acuado, temeroso do que pode lhe acontecer. Plá mantém sua câmera às vezes à altura de seus olhos, às vezes de seu rosto, e dos de Alejandro, equiparando-os no horror e na maneira de enxergar a verdade que se lhes apresenta. Para Miguel nem mudar para seu estado natal resolve, para Alejandro envolver-se é uma forma de distanciar-se do pai e da mãe. Quer escapar em meio à tragédia e ter vida própria, diferente daquela que lhes impingiram o pai e a estrutura do condomínio-fechado, em cuja escola estuda; enfiado num uniforme grená, cópia fiel das escolas tradicionais estadunidenses. Amadurece em meio à tragédia, distanciando-se dos amigos adolescentes, imbuídos de uma paranóia que o amedronta. E cumpre um papel digno, voltado para a redenção que Plá, sabiamente,  não o deixa completar.


              



Iniciativa procura remediar culpa difícil de esconder


              



O diretor não quer transformá-lo num herói, em alguém que vai da adesão às idéias do pai, Daniel, à inquietação da mãe, e, conseqüentemente, se conscientiza da loucura que é o comportamento dos moradores do condomínio-fechado, chamado “Zona”, metáfora da anarquia em que se transformou o capitalismo globalizado assentado sobre os pilares do capital especulativo e da produção voltada para o consumo puro e simples. Alejandro sabe que seu gesto não o leva ao sacrifício, o faz para cumprir um pacto; ficar em paz consigo mesmo. Circula por lugares onde jamais imaginou estar; outro mundo, cheio de labirintos, iguais ao que será a sua vida a partir dali. E também do filme que vai, aos poucos, tomando a si a tarefa de denunciar o beco sem saída em que a burguesia e a alta classe média se meteram, em nome de uma tranqüilidade difícil de ser alcançada, uma vez que é montada em cima de uma montanha de lixo, cujo apodrecimento logo se transformará em gás e este acabará explodindo.
               



O jovem diretor Rodrigo Plá, 36 anos, em seu segundo filme (o primeiro foi “El Ojo en la Nunca, Novia Mia” (O Olho na nuca, minha noiva), trouxe à discussão parte da contradição da burguesia e da alta classe média atual, numa obra que deveria provocar grandes polêmicas mundo afora, mas que, lançada no circuito de cinema de arte, teve seu alcance limitado. Na segunda-feira, dia 05 de maio, apenas três pessoas o viam na sessão das 19 horas. Talvez os distribuidores temessem algum mal-estar entre os moradores dos condomínios-fechados, acostumados à tranqüilidade montada. O grande público ganharia muito vendo “Zona do Crime”, uma obra interessada em atrair o espectador para problemas de seu cotidiano, de forma ágil, inteligente e chocante.
                 



A expressão “chocante” usada ao longo do texto, não se refere tão só à brutalidade da ação: remete à situação em si, quando três homens, em princípio numa atitude condenável, terminam por serem vítimas de um sistema criado para mantê-los longe do que almejam – parte da riqueza conseguida em cima de sua pobreza. Principalmente pela maneira como Plá monta as seqüências mostrando quem, afinal, são os algozes e culpados. Mas, ao chegar ao desfecho, o faz de maneira a levar o espectador a ficar na dúvida se há realmente saída para um sistema assentado numa base que, ao invés de gerar solução, termina por aprofundar o fosso entre ricos e pobres. Não é fácil aceitar, a partir daí, “a sociedade dos muros e cercas eletrificadas”, sem pensar nas vítimas que estão ao seu redor.


 



“Zona do Crime” (“Zona”). Drama. México/Espanha. 2007. 97 minutos. Roteiro: Rodrigo Plá/Laura Santullo. Direção: Rodrigo Plá. Elenco: Daniel Gimenez Cacho, Maribel Verdú, Carlos Barden, Daniel Tovar, Alan Chávez, Mario Zaragoza.


 


(*) Prêmio Primeira Obra, no Festival de Veneza 2007 e outros sete prêmios internacionais.

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