A crueldade do arrocho no salário mínimo

Causa pasmo a decisão do governo Bolsonaro de acabar com o ganho real do salário mínimo. As patetices panfletárias do […]

Causa pasmo a decisão do governo Bolsonaro de acabar com o ganho real do salário mínimo. As patetices panfletárias do seu ministro da Economia, Paulo Guedes, de que esse “esforço fiscal” é importante para conter o aumento do valor de benefícios da Previdência Social que impactam diretamente os gastos públicos, mostram bem o que é a alma de um projeto de poder que tem como único objetivo a acumulação financeira. Tirar dinheiro do bolso dos mais necessitados para esse objetivo é uma ação perversa, uma crueldade.

Além do mais, essa mudança impacta diretamente o consumo de massas, que funciona como propulsor de transformações sociais. É a ideia de que consumir deve ser privilégio de poucos, embrulhada em hipocrisia como a de que sem essa medida o país quebra, uma repetição da calamitosa teoria de primeiro fazer o bolo crescer para depois distribuí-lo, que ficou bem conhecida na ditadura militar. No fundo é a velha prática elitista de fazer a base da pirâmide social assumir goela abaixo responsabilidades que não são suas, pagando sozinha o ônus da crise.

A distribuição da riqueza sempre foi uma ideia proscrita nos círculos dominantes no Brasil. Eles consideram indevido qualquer recurso para que o povo possa usufruir minimente da dinâmica social e econômica do país. Não sem motivos, seus vínculos ideológicos e afetivos com o Estado autoritário são fortes. E, com sua conduta de exploração e acúmulo, abominam qualquer ideia de uma economia mais dinâmica, induzida pela mediação do Estado. Quem se opõem a eles é tratado como alguém que não conhece os "fundamentos" da economia.

Esse é o perfil do governo Bolsonaro, que fica bem delineado com essa negação da continuidade da lei sobre o reajuste do salário mínimo chancelada pela ex-presidenta Dilma Rousseff, que oficializou a medida do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva de calcular a correção da inflação somada à variação do Produto Interno Bruto (PIB) de dois anos anteriores. Seu axioma de que para atrair capital são essenciais a manutenção de baixos salários e controle dos trabalhadores explica essa medida.

Ela complementa a investida sobre a organização sindical e a legislação trabalhista — como a “reforma” trabalhista, a terceirização, a asfixia financeira do movimento sindical e a extinção do Ministério do Trabalho — e que tem na proposta de “reforma” da Previdência Social o seu fecho trágico. O que parece ser uma obsessão contra os trabalhadores é na verdade a tradução de um projeto essencialmente autoritário.

É a reedição de um modelo que parecia morto desde que a marcha da democracia enterrou o regime de 1964. Quando aqueles golpistas tomaram posse do país, uma das primeiras medidas adotadas foi a de pôr um ponto final nas "reformas de base" e alterar radicalmente as relações entre capital e trabalho. Além da violência aberta contra os trabalhadores, a ditadura militar operou mudanças profundas na legislação trabalhista por meio de decretos leis e atos institucionais.

O corte rompeu uma linha que vinha se condensando desde o início dos anos 1950, quando o segundo governo do presidente Getúlio Vargas definiu claramente duas estratégias para o país — o desenvolvimento independente, com distribuição de renda, e a limitação da dependência de capitais estrangeiros. Um ponto significativo daquele período foi o reajuste de 100% do salário mínimo, uma luta do então ministro do Trabalho João Goulart, que seria o presidente deposto no golpe de 1964.

A ordem estabelecida em 1964 também inaugurou a gestão econômica do país por uma tecnocracia que representa negócios privados dentro do governo. Celso Furtado, em seu livro O Brasil pós-milagre, constatou amargamente: "Poucas vezes ter-se-á imposto a um povo um modelo de desenvolvimento de caráter tão anti-social." Qualquer semelhança com a atualidade não é mera coincidência.