A hipocrisia da direita no debate sobre o trabalho doméstico

A lei 11.324, assinada esta semana pelo presidente Lula e publicada no Diário Oficial da União em 20 de julho, significa um grande passo no sentido da equiparação dos trabalhadores domésticos com os demais trabalhadores brasileiros.


 


Este é um contingente que comporta, sozinho, quase dez por cento dos que estão empregados: são mais de 6,4 milhões de trabalhadores, num conjunto de uns 75 milhões de assalariados (que, juntamente com mais ou menos 8,5 milhões de desempregados, forma a População Economicamente Ativa de nosso país). 


 



Mas são trabalhadores que, por razões históricas, estão na base da sociedade, e são tratados de forma subalterna. De acordo com o Ministério do Trabalho, o Brasil tem 6,4 milhões de empregados domésticos. Desse total, somente 1,7 milhão têm carteira assinada (isto é, um em cada quatro); é uma categoria fundamentalmente feminina (93% são mulheres) e negra (57% do total).


 


Contudo, no debate, os setores mais conservadores, principalmente da mídia, alardearam, de um lado, a ameaça que os novos direitos poderiam significar para os patrões, cuja maioria é formada por famílias de classe média. E, por outro lado, no Congresso Nacional, introduziram uma série de alterações tornando a contratação mais cara, pretendendo criar com isso uma saia justa para o presidente Lula, constrangendo-o a vetar estas inovações. As principais delas eram a obrigação do empregador recolher o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), com o respectivo pagamento da multa 40% sobre o saldo do fundo em caso de demissão sem justa causa, e o pagamento do salário-família pela Previdência Social.


 



É aqui justamente reside a hipocrisia e o oportunismo político da oposição. Sob a aparente intenção de proteger estes trabalhadores, a direita e seus aliados no Congresso impuseram dispositivos à lei que, se fossem aceitos pelo presidente da República, teriam o efeito de transformá-la em mais uma dessas leis que não pegam pois contrariam interesses consolidados em nossa sociedade. E o ônus cairia sobre os ombros do governo.


 


Os salários que recebem ilustra a precariedade dessa profissão. Em 2003, a renda média de todos os trabalhadores era de 587 reais; entre os domésticos, era de 330 reais (pouco mais da metade da média nacional) entre os que tinham carteira assinada e 190 reais (um terço da média nacional) entre os que não tinham registro em carteira.


 



São estes os trabalhadores que carregam mais diretamente a herança escravista nas relações de trabalho no Brasil: a profissão não é regulamentada, não tem jornada de trabalho definida em lei, e mesmo os limitados direitos trabalhistas que lhe são reconhecidos foram conquistados há muito pouco tempo, na Constituinte de 1988.


 


A lei 11.324 melhora um pouco essa situação: ela amplia para 30 dias o período de férias (antes era de 20 dias), com 1/3 a mais de salário (que não era obrigatório antes), dá estabilidade de até cinco meses depois do parto para as gestantes e proíbe os empregadores de descontar no salário do doméstico valores referentes moradia, alimentação e produtos de higiene pessoal.


 



Como sempre, a lei foi precedida por um intenso debate, marcado pela mesma hipocrisia que, em 1988, esteve na esteira da aprovação pela Constituinte dos direitos dos trabalhadores domésticos. A origem da lei 11.324 é a Medida Provisória 284, que autorizava o desconto no imposto de renda de valores pagos aos empregados domésticos. O objetivo da MP era incentivar os patrões a registrarem seus empregados em carteira, contribuindo para eliminar a escandalosa informalidade do setor, onde quase três quartos dos trabalhadores não têm registro em carteira.


 


 


O presidente Lula enfrentou a questão e vetou aquelas medidas, pois elas iriam “onerar de forma demasiada o vínculo de trabalho do doméstico, contribuindo para a informalidade e o desemprego, maculando, portanto, a pretensão constitucional de garantia do pleno emprego”. E, segundo o ministro do Trabalho, Luiz Marinho, vai encaminhar ao Congresso Nacional outro projeto de lei sobre o recolhimento do FGTS, sem a multa de 40% no caso de demissão. Lula manteve o direito do empregador deduzir no Imposto de Renda aquilo que estava previsto na MP 284.


 



Apesar do veto -que, tudo indica, a oposição tentará explorar na campanha eleitoral-, a lei 11.324 é um avanço para os trabalhadores domésticos que lutam, desde a década de 1930, pelo reconhecimento da profissão e pelo benefício dos mesmos direitos trabalhistas que a lei garante aos demais trabalhadores.



 


“Estamos mobilizadas em sindicatos desde 1988, mas antes já existia uma grande luta pela carteira assinada, pelos direitos da previdência e até para ser reconhecida como categoria de trabalhadores. Até 1988 não éramos”, diz Nila Coelho, que é membro da diretoria da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad). 


 



São trabalhadores que exigem tratamento profissional, e o fim do paternalismo que historicamente marca a atividade. Sua luta não é apenas por direitos trabalhistas mas pela superação da natureza de trabalhadores de segunda categoria. Em um documento enviado ao presidente Lula, a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) argumenta que “o trabalho doméstico precisa ser reconhecido como parte das relações do mundo do trabalho e para tal a equiparação dos direitos trabalhistas é fundamental”. 


 



As organizações (mais de cem) que assinam o documento querem o fim de relações de trabalho “marcadas pela servidão”, e consideram “intolerável a desvalorização do trabalho doméstico e o não reconhecimento dos direitos trabalhistas das pessoas que estão profissionalmente dedicadas a este trabalho, pessoas essas que, não por acaso, em sua grande maioria, são mulheres e negras”.