A “narrativa política" da reforma da Previdência

O Brasil não é para amadores. A frase atribuída a Tom Jobim é um bom ponto de partida para se desvendar a complexidade de uma proposta tão cruel, do ponto de vista social, como essa da “reforma” da Previdência Social, que tem elementos de “reforma” trabalhista para beneficiar unicamente o patronato; no caso, a inclusão da extinção do FGTS para os aposentados, que nada tem a ver com Previdência Social. Outra maldade, também fora da “reforma” propriamente dita, foi a inclusão do mecanismo que autoriza a aprovação de futuras mudanças nas regras de aposentadoria por meio de projetos de lei, que exigem menos votos no Congresso.

Quem expressou bem o sentido dessas maldades todas foi a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, para quem a fixação de idade de 60 anos para a aposentadoria de trabalhadores rurais de ambos os sexos “é ótimo”. “Hoje, a expectativa de vida do brasileiro é de 75 anos. É preciso olhar todo o contexto da reforma, que precisa ser feita. Acho que até (a equipe econômica) foi condescendente com os trabalhadores rurais”, afirmou.

A essência da proposta é pura maldade. Seu conjunto simplesmente revoga um dos mais importantes dispositivos de correção das desigualdades sociais históricas do Brasil. É a manifestação, sem subterfúgio, dos resquícios do pensamento escravista, o símbolo da volta de uma ideologia que parecia morta no passado recente.

Cada ponto da proposta é uma revelação dessa ideologia, embrulhada na mais espetacular demagogia. Veja o caso do ministro da Economia, Paulo Guedes, para quem a “reforma” é para “proteger as gerações futuras” ao “remover privilégios, reduzir desigualdades e principalmente botar o Brasil para crescer". É uma afirmação vazia, sem nenhuma possibilidade de se concretizar. Faz parte do que o colunista do jornal O Globo Merval Pereira chamou de “narrativa política que fez falta nas últimas tentativas de reformar a Previdência”.

É o mesmo discurso do secretário especial da Previdência do Ministério da Economia, Rogério Marinho, que numa entrevista à Globonews falou em “investimentos represados em segurança pública, educação, saúde pública, infra-estrutura” a serem liberados com a “reforma”. Se não houve essa “narrativa política” nas tentativas passada de “reforma” da Previdência, ela esteve presente nos processos de privatizações, vendidos pelo marketing neoliberal como necessárias para “abater” a dívida pública e liberar “bilhões de dólares” das despesas com juros para financiar investimentos sociais.

É sempre importante enfatizar que há um ideal histórico conduzindo esse processo, com a mesma “narrativa política” de sempre. Basta observar que ela tem sido usada como marketing em campanhas contra dois pilares centrais do processo de modernização do país: a legislação social que se consolidou com o desdobramento da Revolução de 1930, comandada por Getúlio Vargas, e a industrialização, impulsionada por polos estatais, também com as mesmas raízes históricas. Com essas premissas, o Brasil se desenvolveu economicamente e socialmente, se tornou urbano e uma potência média.

Isso só foi possível, evidentemente, porque o país conseguiu superar o velho pensamento escravista e oligárquico em importantes lapsos de tempo, desenvolvendo seus saltos civilizatórios – a Independência, a Abolição e proclamação da República – em processos democráticos como as assembleias constituintes de 1946 e 1988. Mas esse pensamento retrógado, com raízes no século XIX, sempre demonstrou força e em certos períodos recuperou terreno, como acontece agora nesse processo do golpe de 2016 e da eleição da extrema direita em 2018.

Tudo isso embalado pela “narrativa política” do governo que vai custar a bagatela de aproximadamente R$ 45 milhões em campanha publicitária oficial, complementada pelo poder dos monopólios midiáticos. Para enfrentar esse poder do fogo, as forças progressistas precisam desenvolver estudos consistentes sobre o tema, elaborar argumentos sólidos e linhas de raciocínio claras. E promover grandes mobilizações populares.