Ciência e fé: o buraco negro da crise dos EUA

Dois fantasmas assombram o mundo, hoje. Um é agitado por círculos restritos sensíveis a novidades experimentais. Eles são contra o funcionamento do LHC (Grande Colisor de Hadrons), a mais recente maravilha da pesquisa científica, instalado na fronteira entre a França e a Suíça. Alegam que há o risco da criação de buracos negros capazes de engolir a própria Terra. O outro, mais concreto e com impacto direto na vida das pessoas, é o da crise econômica cujo fim ainda não está à vista e que se agrava desde sua eclosão, há um ano. Este sim um buraco negro que consome mais e mais recursos.


 


Os desdobramentos da crise econômica dias são ilustrativos. No domingo (dia 7) o governo dos EUA resolveu intervir nas duas gigantescas agências de crédito imobiliário, a Fannie Mae e a Freddie Mac, que controlam 5,2 trilhões de dólares em hipotecas. Esse valor representa metade do PIB da maior economia do planeta, ou mais de três vezes e meia o PIB brasileiro de 2007. Com isso, voltou a contrariar o credo neoliberal do Estado Mínimo e fora margem da economia, que fica entregue, dizem, às ''mãos invisíveis'' do mercado.


 


É um reconhecimento, às avessas, da precariedade daquela teoria baseada no divórcio entre economia e política. Quando a crise aperta, não vacilam em abandoná-la; o objetivo não é a coerência, mas a salvação do grande capital.


 


Na reunião do governo dos EUA que decidiu retomar o controle das empresas e injetar nelas até 200 bilhões de dólares, houve considerações sobre essa coerência perdida. O problema não é ideológico, teria dito Henry Paulson, o secretário do Tesouro, para convencer Bush a contrariar os princípios neoliberais. Note-se que Paulson é ''um homem do mercado'' e foi presidente da poderosa Goldman Sachs até 2006, quando foi para o governo. Outro quadro destacado do stablishment neoliberal, o economista Vincent Reinhart, do American Enterprise Instyitute, em Washington, explicou: ''numa crise, você começa a flexibilizar os princípios, e Paulson fez isso''.


 


Os oráculos das finanças internacionais, entre eles o comentarista Paul Krugman (do The New York Times), aprovaram a intervenção atual, como já haviam aprovado a de março para salvar os restos do Bear Stearns, outro gigante financeiro que entrou em colapso. Apoiam também as medidas para regulamentar o sistema financeiro. Aprovam mas não acreditam em sua eficiência, e muitos duvidam que a crise tenha chegado ao fundo do poço, ou que tenha um fim previsível. Lembram como exemplo dessa reduzida capacidade de previsão aquela feita em julho de 2007 pelo presidente do Fed (o banco central dos EUA) Ben Bernanke: ele assegurou que o prejuízo da crise imobiliária não passaria de 100 bilhões de dólares; um ano depois, viu-se que ele foi superior a 500 bilhões.


 


A partir do final do século XIX a teoria econômica dominante foi proclamada como uma ciência ''neutra''. Que passou a ser um biombo para a disputa social e política pela apropriação da riqueza produzida, transformando-se em ideologia legitimadora do domínio (político e social) dos donos do dinheiro sobre o conjunto dos trabalhadores e da sociedade. Teoria que esconde a sempre presente simbiose entre dinheiro e poder, entre ''mercado'' e Estado. Alegam que qualquer outro caminho é artificial e contraria essa natureza ''científica'' da realidade econômica. É o caráter ideológico, e não científico, destas alegações que fica exposto quando, rompendo com seus princípios neoliberais, o governo dos EUA corre para salvar o grande capital e o sistema financeiro dominante.


 


Voltamos ao início: os temores contra o LHC, posto em operação pela primeira vez no dia 10, podem ser afastados porque seu funcionamento é controlado pela técnica e pela ciência e seus resultados poderão ser comprovados pelos cientistas ali instalados. Ali não há lugar para a crença ou a fé. Já a economia e seu ''buraco negro'' em pleno funcionamento, tem sido incontrolável e, ela sim, ameaçadora…