Decisão contra Ustra começa a demolir a muralha dos torturadores
A muralha jurídica que protegia o torturador coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra de qualquer punição pelos graves crimes que cometeu […]
Publicado 26/06/2012 17:59
A muralha jurídica que protegia o torturador coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra de qualquer punição pelos graves crimes que cometeu quando agente da repressão política da ditadura militar começou a ser demolida ontem (25) com a sentença da juíza de direito da 20ª Vara Cível de São Paulo, Cláudia de Lima Menge. Ela condenou o ex-comandante do DOI-Codi de São Paulo pelas torturas e assassinato do jornalista e militante da resistência democrática Luiz Eduardo Merlino, em 19 de julho de 1971.
A sentença proferida contra Ustra corrige, implicitamente, a causa mortis. A alegação mentirosa de que ele se suicidou, feita por seus algozes, e que consta do atestado de óbito de Merlino, foi claramente desmascarada naquele documento condenatório pelo reconhecimento da morte sob tortura. E do posterior “atropelamento” do cadáver por um caminhão a serviço do DOI-Codi para simular o falso suicídio. Foi possível “constatar que ele fora vítima de tortura”, anotou a juíza, restaurando a verdade. Ela se baseou nos depoimentos de outros presos que presenciaram o massacre a que Merlino foi submetido.
Espancamentos e torturas, ressalta a sentença, ocorridos “sob supervisão, comando e, por vezes, por ato direto do requerido, que, então, era comandante do DOI-Codi e da operação Oban” (requerido, aqui, significa, no jargão processual, o causado; no caso, o então major Ustra). Esta compreensão é reafirmada em outros pontos da sentença, como aquele onde Ustra é descrito como “membro do Exército, comandante do DOI-Codi e da operação Oban” cuja atividade consistia em “comandar tortura e, por vezes, dela participar diretamente”.
A sentença não foge de eventuais polêmicas jurídicas que poderá suscitar e sustenta que não há, no caso, “ingerência da anistia contemplada na Lei nº 6.683/79”, que é – assegura – de “âmbito exclusivamente penal” e, portanto, “não trata da responsabilidade civil pelos atos praticados no chamado ‘período de exceção’”. Reconhece inclusive a discussão existente sobre a lei de Anistia, citando a decisão sobre ela tomada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, da OEA, em 2010. Fundamenta a decisão na convicção de que crimes contra os direitos humanos são internacionalmente reconhecidos como imprescritíveis, incorporada à cultura jurídica e democrática dos povos desde o Tribunal de Nuremberg que, em 1946, processou e condenou os criminosos de guerra nazistas.
O respeito aos direitos humanos, desde então, independe, “para sua eficácia, da vontade dos sujeitos envolvidos numa relação jurídica”, tratando-se de “um imperativo moral transformado em axioma jurídico”, registrou a juíza Menge em sua sentença, lembrando a já extensa legislação internacional, composta por Declarações Universais de Direitos e Convenções ratificadas pelos países civilizados.
É outro golpe contra as pretensões de defesa do torturador Ustra: “sob a ótica dos direitos humanos, está proclamada a imprescritibilidade dos crimes contra os direitos de personalidade e de suas consequências”, ensina a juíza, com base também na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça para o qual estas ofensas não prescrevem, “inclusive aquelas praticadas durante o regime militar” mesmo porque elas se referem “a período em que a ordem jurídica foi desconsiderada, com legislação de exceção”.
Ela não aceita ainda que, como comandante da antessala do inferno que foi o DOI-Codi de São Paulo, Ustra não soubesse das torturas e maus tratos a presos políticos: “não é minimamente crível que o requerido não conhecesse a dinâmica do trabalho e a brutalidade do tratamento dispensados aos presos políticos”, bastando apenas isto para reconhecer sua culpa “pelos sofrimentos infligidos a Luiz Eduardo e pela morte dele que se seguiu”. Mas Ustra, ressalta, dirigia a tortura, determinando seu ritmo e intensidade, e também participava diretamente dela.
Não cabe nem mesmo a alegação do cumprimento de ordens por parte do agente público torturador e assassino político, pois “se trataria de ordem absolutamente ilegal, que, por isso mesmo, não poderia ser acatada, sem delinear culpa própria”.
Finalmente, citou na sentença como agravantes dos crimes de Ustra a brutal violência “com que o requerido pautou sua conduta” e a crueldade usada por ele.
A sentença contra Ustra deve ser comemorada como mais um passo no sentido do restabelecimento da verdade (não é sem razão que a juíza Menge se refere, na sentença, ao trabalho da Comissão da Verdade) sobre a repressão política da ditadura e pela responsabilização dos agentes, civis e militares, que cometeram graves crimes na repressão aos militantes da resistência democrática e, hoje, ancoram sua defesa na lei de Anistia de 1979 e num pretensa prescrição dos crimes que cometeram.