Democracia só para os doutores?

O renitente conservadorismo brasileiro volta e meia repete teses elitistas, antipopulares e, sobretudo, antidemocráticas, a pretexto de ''aperfeiçoar'' a democracia e blindar o sistema eleitoral contra ''maus políticos''.



Desta vez foi o juiz eleitoral Mateus Milhomem de Sousa, de Aurilândia (GO) que, no processo de cassação do prefeito de Palminópolis, João Adélcio Alves (PSDB), acusado de compra de votos (ele acabou absolvido), defendeu um peso menor para os votos dos eleitores com baixa escolaridade e a proibição de cidadãos sem estudo de participarem de eleições. O juiz propôs a criação de um sistema de pontuação onde o voto do eleitor analfabeto valeria um, subindo de valor até o voto dos universitários com doutorado (os ''doutores''), que valeria sete.



Não é uma proposta nova. Ela já havia sido sugerida na década de 1950, por exemplo, por políticos da UDN (o partido da oligarquia neoliberal daquela época, avô dos atuais Democratas e PSDB). Um deles, o jornalista conservador e anti-getulista radical Afonso Henriques, defendia o que chamou de ''voto cultural progressivo'' para desvalorizar o voto popular. O voto de quem tivesse apenas o curso primário incompleto (que, na época, era muito mais comum do que hoje), valeria um; para os que terminaram o curso primário, valeria dois; para quem tivesse curso superior completo, valeria quatro.



Na opinião daquele jornalista, os eleitores tinham culpa pelos problemas do Brasil. ''Todo o mal reside em duas coisas: a deficiência da educação do povo e a inadaptabilidade do regime eleitoral às condições de cultura do país'', escreveu numa situação em que, como hoje, a elite conservadora estava acuada: ao eleger Getúlio Vargas para o segundo mandato presidencial, em 1950, o povo indicou a decisão de desenvolver e democratizar o país, contra aquela oligarquia que fez de tudo para manter seus privilegios e poder. 



Além de manifestar uma opinião conservadora e antidemocrática, o juiz eleitoral demonstra também pouco apreço pela Constituição que, no artigo 5º assegura que ''todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza'', e no artigo 14º determina que a soberania popular seja ''exercida pelo sufragio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos''.



A proposta de valores diferenciados para o voto deixa milhões de brasileiros à margem da cidadania. Na eleição do ano passado, havia 130 milhões em condições de votar, e concorreram quase 382 mil candidatos (a vereador, prefeito e vice). Apenas 18% deles tinham curso universitário completo; assim, os demais (82% do total dos candidatos) sofreriam alguma limitação de seus direitos políticos caso o voto qualificado defendido pelo juiz fosse adotado.



Entre os eleitores, os prejuízos democráticos seriam semelhantes. No eleitorado de outubro de 2008 havia apenas 3,5% de pessoas com diploma universitário. Os demais, que são a imensa maioria do povo brasileiro, vão desde os analfabetos até os que tem o curso primário completo ou não (63% do eleitorado); teriam assim um voto de qualidade inferior, valendo um quarto do voto dos felizardos universitários.



As chances de implantação deste tipo de ideias são escassas. Mas elas revelam até onde vai o delírio conservador que pretender impor limites à manifestação da vontade popular. A reflexão sobre elas é importante particularmente neste momento em que o governo enviou para o Congresso sua proposta de reforma política que inclui formas de manipulação da vontade popular quase tão rudes quanto aquelas, como a cláusula de barreira e a proibição de coligação entre os partidos. Os problemas do Brasil não decorrem, como muita gente pensa, do excesso de democracia e da participação popular. Ao contrário: a solução deles depende da ampliação da democracia, da participação popular e do controle social sobre o desempenho dos representantes do povo, em todos os níveis.