França: o impulso das lutas dos trabalhadores

A multidão de três milhões e meio de manifestantes que mais uma vez convulsionou as cidades francesas nos últimos dias […]

A multidão de três milhões e meio de manifestantes que mais uma vez convulsionou as cidades francesas nos últimos dias confirma a impetuosidade das lutas sociais nesse país, como reflexo da profunda crise do sistema capitalista.

As greves e manifestações, que – nesta etapa – já duram uma semana, expõem a aguda percepção dos trabalhadores do que está em jogo com a reforma da Previdência que o presidente Nicolas Sarkozy quer impor.

"Ao diabo com a dívida pública. Não vamos dar nada a eles, não estamos nem aí com o seu AAA!", dizia um cartaz, expondo as entranhas do problema ao se referir à nota máxima das agências de avaliação de crédito que, para continuar considerando o governo confiável, exigem o controle das despesas públicas.

Os protestos cresceram, levando o país a um impasse, cuja questão de fundo é a divisão entre os grandes capitalistas e os trabalhadores dos ganhos de produtividade alcançados pelo avanço tecnológico.

As ações se desdobraram pelas cidades francesas, com passeatas, bloqueio a aeroportos, refinarias de petróleo e ao porto de Marselha, colapso do abastecimento de combustíveis, redução dos serviços de transportes e lutas de rua. Num quadro de profunda confusão política e de enorme insatisfação com um governo direitista com viés personalista e autoritário, não faltaram também ações que nem sempre se coadunam com o verdadeiro caráter dos protestos. Intrínseca e moralmente fraco, o governo tem atacado duramente os manifestantes, com a violência policial.

As greves e manifestações de rua são comandadas pelas centrais sindicais e, desde o dia 18, também por entidades estudantis, fazendo-se notar o protagonismo dos sujeitos da luta de classes, que os neoliberais julgavam extinta: os trabalhadores, entre eles petroleiros, aeroportuários, aeroviários, ferroviários, professores, carteiros e vigilantes responsáveis por abastecer caixas eletrônicos, que não aceitam pagar as contas da tentativa governamental de conter o déficit público, hoje de mais de 7% do PIB. Dogmático na interpretação da realidade e aplicação inflexível dos princípios neoliberais, o governo associa o déficit público aos gastos com a Previdência.

Na verdade,o o déficit público chegou a esse elevado patamar devido ao “socorro” do Estado aos bancos que entraram em bancarrota com a crise financeira.

A adesão dos estudantes fortaleceu a luta e fez ressurgir o fantasma que, desde 1968, parecia exorcizado, mas que volta a espantar o stablishment: a ação unificada dos trabalhadores e da juventude. Todos de mãos dadas contra o ataque do governo aos direitos sociais: o projeto de Sarkozy, de elevar a idade mínima para a aposentadoria de 60 para 62 anos e de 65 para 67 anos no caso de aposentadoria integral, é com razão encarado como o primeiro ato de uma investida mais ampla contra as conquistas dos trabalhadores, como férias, limites às demissões, sistema público de saúde, etc.

Os conservadores que apoiam a reforma de Sarkozy justificam a perda de direitos alegando o aumento da expectativa de vida. Uma vida mais longa impõe a aposentadoria mais tarde, dizem eles.

Num país avançado como a França (da mesma forma como nas demais nações de capitalismo desenvolvido) este argumento esconde uma realidade à qual os capitalistas preferem não se referir: o aumento da produtividade do trabalho alcançado com as mudanças tecnológicas. Este é o pano de fundo do debate: para o capital, este aumento significa maiores, sacrossantos e imexíveis lucros; para os trabalhadores, ele é a perspectiva de mais tempo livre.

Neste sentido, o chamado déficit público é o nome “técnico” da transferência – intermediada pelos governos conservadores – destes ganhos de produtividade para o grande capital. Daí a lógica aparentemente implacável: as pessoas vivem mais e por isso precisam trabalhar mais. Isto é, dedicar uma parcela maior de suas vidas à valorização do capital.

O que está em jogo é a extensão desta subordinação ao capital, medida não apenas pela duração da jornada diária de trabalho mas principalmente pela duração do trabalho de uma vida inteira. Esta é uma das contradições fundamentais do modo de produção capitalista e é ela que está sendo repudiada nas ruas das cidades francesas.