Líbia: o medo do espectro do anti-imperialismo

Já houve comentaristas que compararam o levante dos povos árabes à “primavera dos povos” europeia de 1848. Aparentemente eles têm razão. Mas só aparentemente: o levante árabe, que ocorre mais de século e meio após o terremoto que abalou as monarquias europeias, ocorre em uma realidade política extremamente diferente: o mundo do imperialismo. A luta contra tiranias e governos autoritários tem entre seus alvos o imperialismo e seus aliados em cada nação, como vem ocorrendo em todo o norte da África e Oriente Médio.

Este é o principal ponto que distingue o levante (guerra civil?) que ocorre na Líbia, uma diferença essencial.

O coronel Muamar Kadafi, que governa a Líbia desde a deposição da monarquia, em 1969, lidera um regime que expulsou empresas estrangeiras (principalmente britânicas e norte-americanas), nacionalizou a economia e colocou o país numa rota de crescimento e bem-estar, por um lado, e de enfrentamento do imperialismo, por outro. Durante décadas foi inimigo acérrimo da dominação estrangeira que impuseram sanções e ataques militares contra a Líbia que, chegaram, em 1986, ao bombardeio do palácio presidencial na capital, Tripoli, durante o qual uma filha de Kadafi foi morta.

Mesmo tendo chegado a acordos com os governos dos EUA e da Europa, há uma década, Kadafi nunca chegou a ser confiável para as grandes empresas multinacionais e para os mandatários do imperialismo. Pouco adiantou, nesse sentido, aplicar planos de ajuste econômico impostos pelo FMI, que resultaram na mesma e repisada lista de mazelas que outros povos sofreram sob o mesmo receituário: empobrecimento, desemprego, desnacionalização.

Kadafi é um líder político contraditório, que oscilou entre o anti-imperialismo e a aliança com o império. Daí as reações contraditórias que enfrentou durante os primeiros dias depois do início dos protestos no centro nevrálgico representado pela cidade de Bengazi. E também a reação da mídia mundial, que voltou a demonizar o dirigente líbio.

Uma diferença fundamental entre os protestos que ocorrem no mundo árabe e os acontecimentos na Líbia diz respeito à natureza dos movimentos de massa. Na Tunísia, Egito, Marrocos, até na Arábia Saudita, há uma forte marca de espontaneismo que não está presente no levante líbio. Lá, ao contrário, desde o início os rebeldes desfraldaram a velha bandeira da monarquia extinta em 1969. Um dos principais grupos de oposição é a Frente Nacional pela Salvação da Líbia (NFSL na sigla em inglês), criada em 1981 e como braço da CIA, que a organizou e financia; o outro grupo de destaque é a União Constitucional Líbia (LCU), aliada à NFSL, financiada pela CIA e dirigida por Muhamad as-Senussi, que pretende restaurar a monarquia e assumir o trono.

Há contradições particulares. A reação e o descontentamento da população e mesmo de setores militares contra as consequências do ajuste econômico imposto pelo FMI e pelo enfraquecimento militar do país, imposto pelo imperialismo (e aceito por Kadafi), abriu a brecha pela qual o imperialismo e seus aliados monarquistas tentam voltar a interferir no país.

Os sinais são claros e contraditórios. A movimentação militar (porta-aviões e bombardeios dos EUA e da Otan tomando posições ofensivas em relação à Líbia) e a movimentação diplomática do imperialismo indicam a disposição de uma ofensiva guerreira que os povos não aceitam. E que é rejeitada pela Liga Árabe, pela União Africana e pela Organização da Conferência Islâmica, que rejeitam qualquer interferência estrangeira na Líbia e reconhecem que qualquer decisão sobre o destino do país cabe soberanamente ao povo líbio.

Embora o impasse do imperialismo seja visível, suas ameaças são concretas. Elas envolvem desde a Otan, o Conselho de Segurança da ONU, até uma desejada ajuda da monarquia saudita para servir de biombo ao fornecimento de armas aos rebeldes líbios.

Os resultados de uma intervenção imperialista são imprevisíveis. Eles vão desde um novo atoleiro político e militar semelhante ao que hoje são Iraque e Afeganistão, até o medo de um levante árabe ainda mais intenso, capaz de tornar definitivamente instável a situação do imperialismo na região. O impasse decorre disso: a sanha agressiva do imperialismo ainda não encontrou uma forma segura para seus interesses de intervir contra Kadafi. Enquanto isso, o espectro do anti-imperialismo assusta os governantes dos EUA e da Europa.