Lições da Argentina para a crise brasileira

O atual debate eleitoral no Brasil traduz um panorama bem demarcado na América Latina. De um lado, as forças políticas conservadoras reeditam ideias que num passado recente conduziram a uma sucessão de crises que se estendeu de Tijuana (México) à Terra do Fogo (Argentina). De outro, o pensamento progressista indica a retomada do caminho que vinha promovendo o desenvolvimento nacional associado à integração regional para uma inserção soberana no cenário internacional, depois de um onda de retrocessos que inclui o golpe no Brasil em 2016.

Um exemplo do que representa o retorno à hegemonia da direita é a Argentina, que enfrenta uma turbulência decorrente das mesmas causas que no passado neoliberal levaram o país à bancarrota. Já é possível imaginar a volta das imagens de 2001, quando a economia do país do tango foi à lona e a polícia teve de proteger os bancos com metralhadoras para não serem destruídos por uma população em fúria, depois que o governo adotou o “corralito” restringindo saques bancários.

A crise só começou a ser superada quando o governo do presidente Néstor Kirchner impôs, em 2005, o “pegar ou largar” para renegociar a dívida do país, com reescalonamento dos prazos e um acentuado desconto nos valores originais dos títulos – um processo que seria concluído somente em 2010, já no governo da presidenta Cristina Kirchner.

Um dos mecanismos que possibilitaram a saída do país do fundo do poço foi o abandono da receita do Fundo Monetário Internacional (FMI), especialmente o corte de despesas quando a economia estava em recessão profunda – exatamente o que propõe a direita brasileira no atual debate eleitoral. As medidas internas e as reviravoltas da geopolítica transformaram a Argentina num dos países do G20, o “clube” dos poderosos do mundo, algo dificilmente imaginável na era dos neoliberais.

O retorno da direita ao poder, e a consequente reedição da receita da bancarrota, contudo, potencializou os efeitos da crise global, arrastando o país de volta à turbulência. E com ela a tutela do FMI, com a manifesta recomendação da sua diretora executiva, Christine Lagarde, de que o compromisso do governo do presidente Maurício Macri de “redirecionar a sua economia” deve ser cumprido à risca.

O governo argentino joga a culpa na história dos últimos 70 anos. De acordo o chefe de gabinete Marcos Peña, homem de confiança de Macri, a crise tem origem nos “sucessivos governos que não fizeram o suficiente para remediar problemas estruturais”. Segundo ele, conta também “uma mudança de contexto financeiro e comercial no mundo, fundamentalmente a partir das tensões entre Estados Unidos e China”.

Na verdade, a causa básica das turbulências internacionais são as políticas monetárias que destinam trilhões de dólares para salvar bancos, um fenômeno característico do capitalismo predominantemente financeiro. Um dos seus mecanismos fundamentais é a massa de capital especulativo que gira pelos países em velocidades jamais vistas – aquilo que o economista norte-americano John Kenneth Galbraith definiu como “manifestações de insanidade” –, assombrando principalmente as economias débeis.

Conforme explica Roberto Luis Troster, ex-economista-chefe da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), em artigo no jornal Folha de S. Paulo, o Brasil está nessa condição, com suas reservas internacionais de US$ 380 bilhões frente a US$ 761 bilhões passíveis de ataques especulativos (investimentos estrangeiros, contando operações intercompanhias e os financiamentos de curto prazo dos bancos).

A crise tem grande influência no debate político. No Brasil, há um aberto movimento de corretoras, consultorias e bancos para se fazer representar na disputa. Candidaturas como as de Geraldo Alckmin, Jair Bolsonaro, Marina Silva, dentre outras, assumem claramente a agenda ultraliberal. A mesma que levou a crise de volta à Argentina com graves consequências para a vida do povo.

Paul Krugman, em artigo da mesma Folha (reproduzido do The New York Times), diz que o próprio conceito de democracia ocidental (Europa e Estados Unidos) está ameaçado, como já ocorre na Polônia e na Hungria com a eleição de governos de extrema direita. Segundo ele, o mesmo poderia facilmente acontecer até nos Estados Unidos, com o Partido Republicano explorando o poder político de que dispõe atualmente para fixar permanentemente o seu domínio.

A América Latina tem experiências amargas nesse sentido. Depois dos ciclos de totalitarismos militares chegaram os governos neoliberais. No Brasil, o desastre das diretrizes econômicas do mundo das finanças ficou bem demonstrado quando o FMI chegou estendendo uma mão com ajuda financeira e outra com as exigências de severas metas de “ajustes” (cortes orçamentários que atingiam drasticamente os recursos pertencentes aos setores sociais e de infraestrutura).

Não é possível imaginar o Brasil “dono de seu próprio nariz” com essa orientação macroeconômica, como disse certa vez o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, falando do rompimento do Brasil com o FMI. No entanto, a premissa que levou o país a se tornar dependente daquela amarga receita está de volta no debate eleitoral. E, como é da sua praxe, com mais pontos de exclamação do que argumentos.

O resumo dessa ópera foi exposto pela ex-presidenta da Argentina, Cristina Kirchner, na assembleia geral da Organização das Nações Unidas (ONU) de setembro de 2008, quando a crise foi o único tema em debate. Na ocasião, os presidentes latino-americanos foram apertados em Nova York pelos gestores das multinacionais, que exigiam respostas urgentes para saber como eles pensavam a crise.

Cristina Fernández foi implacável: “O Primeiro Mundo, que nos pintava como ‘A Meca’, está caindo em pedaços e vocês perguntam-me se a Argentina tem um ‘plano B’ para enfrentar a crise? Senhores, sejamos francos! É preciso que vos fale seriamente: quem precisa de um ‘plano B’ são vocês, Estados Unidos e União Europeia, e podem consegui-lo se fizerem uma gestão responsável das vossas economias”.