Sandra Helena de Souza: O golpe desrecalcado

Por *Sandra Helena de Souza

Isso é o Estado, companheiros! - Divulgação

Durante quase duas décadas, convivi intimamente com pessoas diretamente atingidas pelo terror do Estado na última ditadura civil-militar. Essa convivência com quem insiste na memória de uma dor inominável me ensinou mais sobre a história recente do Brasil que todos os livros que porventura tenha lido.

Minha juventude encontrou o País em distensão. Ao chegar à universidade na aurora dos contagiantes anos oitenta, participei das grandes manifestações pela redemocratização. A lembrança das “Diretas Já” me soa triste: na noite da derrota da emenda Dante de Oliveira, voltei a casa sofrendo sem ainda conseguir perceber o curso poderoso das coisas para além de nossas vontades, aquilo que se costuma chamar o espírito do tempo. Eram tempos de abertura. Que tempos são os nossos, afinal?

Embora a Lei de Anistia resista e os agentes oficiais da repressão continuem impunes, a Comissão Nacional de Anistia, bem como as estaduais têm feito, nos últimos anos, um trabalho incansável quanto ao resgate da significação do Estado de Exceção por meio das indenizações laborais e pedidos de perdão às vítimas. Entre 2012 e 2014, a Comissão Nacional da Verdade vasculhou os escombros da nação e trouxe à tona um extenso relatório com recomendações, sem a participação dos arquivos militares, que se recusaram a colaborar. Quanto a estes, cabe recordar que, durante todos os anos dos governos FHC e Lula, a ordem do dia nos quartéis nos 31 de março era de apologia da “revolução”. Coube à presidente Dilma pôr termo ao absurdo.

Houve já quem dissesse que fazemos a história, sim, mas não do modo que queremos. Bingo. A passagem dos 50 anos da quartelada nem de longe significou uma apropriação simbólico-narrativa do País a respeito da recente violência de Estado. Bem ao contrário, poucos meses depois de apresentado o relatório final da referida comissão, vimos estupefatos pelas ruas pedidos de intervenção militar e o que antes era um envergonhado silêncio tornou-se um agressivo discurso que retoma a narrativa da “gloriosa” que livrou o País dos “comunistas”. E, pasmem, o governo é comunista.

Então, como um grito preso na garganta ecoa o reprimido brado retumbante, a par de todo o assombroso roteiro de deposição do governo legitimamente eleito, que vai do impeachment, passa pela renúncia e chega à convocação de novas eleições. Ele sacode o País inteiro em um multiverso de eventos políticos emocionantes, o que montanhas de livros, filmes, relatórios não pareciam capazes de galvanizar como uma verdade moral e cívica – o fantasma sai da tumba: golpe, golpe.

O #NãoVaiTerGolpe avança finalmente como a dessublimação do “não houve golpe”, “não foi golpe, foi revolução” e congêneres. Nunca antes na história deste País, nem nos 50 anos de 64, o País assumiu tão desabridamente seu passado de golpe e ditadura. É mesmo de Marx com Hegel que se trata. A gente vai retrocedendo ao fundo: a única maneira de avançar.

Um salve aos velhos combatentes. Estamos nas ruas. O tempo nos levará.


*Sandra Helena de Souza é membro do Instituto Latino-Americano de Estudos em Política, Direito e Democracia

Opiniões aqui expressas não refletem necessariamente as opiniões do site.