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60 anos sem João Martins de Athayde, um pioneiro da literatura popular

Há uma mania nacional de, vez por outra, se decretar a morte de determinadas manifestações culturais. Assim, vez por outra se diz que o samba morreu, como já se disse mais de uma vez que o autêntico forró morreu. Logo depois dessas mortes, milagrosamente, surge uma nova geração de grandes sambistas ou de autênticos forrozeiros pé-de-serra.

Por Joan Edesson De Oliveira*

João Martins de Athayde

Acho que nenhuma manifestação cultural popular já “morreu” tanto quanto o cordel, a literatura popular. E, entretanto, o cordel continua vivo, tendo ganhado o Brasil urbano e se fortalecido nas grandes cidades. São Paulo, por exemplo, nossa maior metrópole, é grande consumidora de folhetos de cordel. O cordel continua sendo vendido no país inteiro, presente desde as feiras do interior do nordeste até às grandes redes de livrarias. Folhetos são vendidos em pequenas bancas de revista sobreviventes, mas também são vendidos nas livrarias de shoppings e aeroportos. Em rodoviárias, então, nem se fala. Difícil que haja uma delas sem que se tenha a possibilidade de ali comprar um bom folheto de cordel.

Esse preâmbulo todo é para dizer que num 7 de agosto como o desta quarta-feira, há 60 anos, morreu na cidade de Limoeiro, no Pernambuco, João Martins de Athayde, um dos maiores poetas populares do Brasil e um pioneiro na indústria da literatura popular.

Athayde nasceu em Cachoeira de Cebolas, povoação de Ingá do Bacamarte, no sertão paraibano. A povoação onde nasceu deu origem ao atual município de Itatuba. Era, assim, um autêntico “paraíba”, desses que dão dor de cabeça ainda hoje àqueles que se julgam acima de tudo e de todos.

O próprio poeta declarou certa vez ter nascido em 23 de junho de 1880. O escritor pernambucano Mário Souto Maior afirmou que a data correta do nascimento de Athayde é 23 de junho de 1877.

João Martins de Athayde não frequentou a escola, como a maior parte das crianças do sertão na sua época, mas isso não impediu que aprendesse a ler e escrever sozinho, como tantos outros também fizeram. O interesse pela poesia nasceu cedo, aos oito anos, segundo depoimento dele próprio, ao assistir um desafio do poeta Pedra Azul. Ainda criança começou a escrever seus primeiros versos.

Muito jovem ainda, em 1898, a seca o fez migrar para Camaragibe, na região metropolitana do Recife, para onde se mudaria posteriormente. Foi no Recife que publicou seu primeiro folheto.

Integrante da primeira geração de poetas de cordel, foi também da primeira geração de editores especializados em cordel, ao lado de Francisco das Chagas Batista e de Leandro Gomes de Barros, por quem nutria grande admiração. Quando Leandro morreu, comprou os direitos do poeta à esposa, numa das primeiras transações desse gênero ocorridas no Brasil.

Athayde publicou o seu primeiro folheto em 1908, impresso na Tipografia Moderna, com o título de Um Preto e um Branco Apurando Qualidades. Já no ano seguinte, em 1909, montou uma pequena tipografia na rua do Rangel, no Bairro São José, no Recife, transformando-se, ao longo dos quarenta anos seguintes, no principal editor de literatura popular do país.

Em quatro décadas editou títulos na casa dos milhares. Só os que escreveu totalizam quase 500 folhetos. Ter um folheto editado por João Martins de Athayde era praticamente garantia de sucesso.

Só o trabalho autoral seria suficiente para dar a Athayde um lugar de destaque na literatura popular brasileira. Suas obras, ainda hoje republicadas, mostram um poeta de grande valor. Mas ele foi muito mais do que um autor profícuo e de grande qualidade. O seu trabalho como editor o coloca num patamar destacado na história do cordel.

Com ele, profundas mudanças foram introduzidas no mercado editorial do cordel, seja na relação entre os poetas e os proprietários de gráfica, seja na própria apresentação gráfica dos folhetos.

Foi com Athayde que surgiram os contratos de edição, com o pagamento de direitos de propriedade intelectual. Ele introduziu nos folhetos a utilização de subtítulos e preâmbulos em prosa, e fez importantes mudanças na própria criação poética, sujeitando-a ao espaço disponível, fixando o padrão dos folhetos pelo número de páginas em múltiplo de quatro. Foi a partir dele que surgiu um padrão que se mantém até hoje, de quatro, oito e dezesseis páginas, com quatro estrofes em cada página, o que resultava em folhetos com dezesseis, trinta e duas ou sessenta e quatro estrofes.

Os folhetos menores praticamente desapareceram, restando os de oito páginas e trinta e duas estrofes, comumente chamados de folhetos, e os maiores, com dezesseis páginas e sessenta e quatro estrofes, chamados por muitos de romances.

Da pequena tipografia montada em 1909 saíram, durante quarenta anos, estórias fantásticas, recriações, críticas, notícias de acontecimentos, que corriam o Nordeste e o Brasil inteiro.

Seu pioneirismo, industrializando e comercializando as suas obras e de inúmeros outros artistas, criou uma teia de atividades lucrativas que se espalhou país afora, com poetas, folheteiros, vendedores, possibilitando inclusive que muitos poetas, durante a sua época, se dedicassem exclusivamente à poesia como atividade profissional.

Seus títulos educaram, divertiram, informaram, emocionaram milhares de leitores, e continuam a fazê-lo até hoje. A mim, romances como a História de Roberto do Diabo, a História da Moça que foi Enterrada Viva, a História do Valente Vilela, a Sorte de uma Meretriz, O Estudante que se Vendeu ao Diabo, o Romance de José de Souza Leão, e tantos outros que li antes de fazer 10 anos de idade e continuo a ler até hoje, a mim esses romances todos ajudaram na minha formação literária e forjaram a minha identidade sertaneja e a minha identidade poética.

Em 1949, um acidente vascular cerebral afastou Athayde da sua intensa atividade poética e editorial. Vendeu a sua tipografia para José Bernardo da Silva, repassando-lhe ainda todos os estoques e os direitos de edição sobre tudo que havia publicado.

Dez anos depois, em 7 de agosto de 1959, o poeta faleceu em Limoeiro, no Pernambuco.

Sessenta anos depois da sua morte, seu nome se firma, cada vez mais, como um dos principais nomes da literatura popular no Brasil.

* Joan Edesson de Oliveira, educador, é mestre em Educação Brasileira pela Universidade Federal do Ceará