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Aidenor Aires: Carnaval – o tédio faz a folia

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O carnaval é outra invenção do tédio e da tristeza brasileira. As chamadas classes altas cacarejam em Paris, Nova Iorque, ilhas gregas ou romanas. Desfrute e gozo de moedas judaicas. Ralé, a de baixo e a de meia altura, é pura catarse, purgação. Para sair inculpável, expondo suas caras, línguas e vísceras, faz como os políticos e os atletas de figurino. Vão buscando adornos, pinturas, preenchimentos e máscaras para que possam luzir suas carcaças roídas pelos dias e pelas mágoas. Descansam do nada que são na linha de produção global.  Deixam-se rolar na corrente de êxtase, fumaça, pó e cachaça. Esquecem a pobre carcaça miserável. A tragicômica alma cotidiana. Mata o pai que o persegue, trucida a mãe que a consome e vai hilariante na comunhão de saliva, suor e esperma, com a esperança de redimir-se na pílula do dia seguinte. Meses de malhação, uma cota do salariozinho subtraída, pelo direito a trotar como macacos adestrados ao comando da deusa diarréica do trio elétrico, do deus andrógino do ultimo ritmo. Nesses dias pode-se encarar o país real. O que apenas se esboça na corte, nos parlamentos. O grande histrião, depois de beber e babar sobre a súcia, de grasnar indecoroso sobre todo o siso, multiplica-se na carantonha que brande a multidão. Desfolha-se em camisinhas e ri dos que não poderão nascer e ri dos que estão morrendo. Que o povo não quer pão. Quer báquicos, sáficos e safados. O carnaval de hoje precede o de dois mil e deis. É preciso manter a folia. Não se sabe se a musa remanufaturada, esticada, recheada logrará ganhar o apetite das ruas. É preciso torná-la mais inodora, menos espinhosa, de alguma forma tolerável, a que nunca será desejada. Nesses dias me recolho. Fico em silêncio. Vejo um rio correr e contemplo um lago artificial que fizeram aqui perto de casa. Olho minha gente, falo aos meus filhos das cascas de banana que espalham pela vida, dos atalhos que deságuam em peraus. Sei que não vou poder dar o mapa a cada um. Viver é desenhar suas estradas, seus territórios. Mas não se pode andar distraído pela vida. Pode-se perder o melhor num piscar de olhos. Deus odeia a multidão. Para ela não se farta de enviar catástrofes, incêndios, terremotos e maus governantes. O homem não deve caminhar sozinho. Há rastros a ser conhecidos e outros a deixar, pioneiros, nos caminhos. Multidões constroem muralhas chinesas, pirâmides egípcias, maracanãs, consomem esmolas oficiais e ungem ditadores cômicos e sórdidos.. Na quarta-feira de cinzas estarão diante do mesmo espelho. Precisam de novos retoques, talvez intervenções mais severas: um novo nariz, uma lipoaspiração, algum enxerto, ou reversão sexual. O difícil, nestes tempos, não é viver. É agüentar a vida sem tezão, sem utopia, sem afeto, sem sorriso ou lágrima. A pura alegria dos simples, que pulula gratuita nas ruazinhas sem nome, não é para todos. É dote da pureza e da quase extinta inocência. Disso a multidão não é digna, nem com ricas máscaras, nem com recauchutagens plásticas, nem com afetos comprados. Mesmo que apareça na televisão, No rádio, no cinema. É fantasia. Quando dela se despem verificam que estão nus. Nu o rei, nua a rainha, nua a corte, e mais nu quem cantou a miserável glória de súdito.