Em comemoração ao 100 anos do nascimento do poeta pernambucano, que será comemorado em 9 de janeiro, Caetano lhe presta uma homenagem
Publicado 06/01/2020 08:44 | Editado 08/01/2020 08:21
Na minha juventude, João Cabral foi meu poeta preferido. As rimas toantes, a secura, aquele avesso do surrealismo que era o cerne de seu impulso experimental me arrebataram para além do que me parecia ser o mais elevado estágio de poesia: Drummond.
Quando conheci Cabral pessoalmente (no Senegal, onde ele era embaixador e aonde fui com Gil, a caminho do Festac na Nigéria), sua personalidade fascinou-me tanto quanto os seus poemas. Estive com ele mais três vezes depois dessa. Uma no Porto, onde ele servia como cônsul, e duas no Rio: em sua casa e numa leitura/palestra que ele deu ao lado de John Ashbery e Joan Brossa, em evento organizado por Waly Salomão e Antonio Cicero.
A suas casas, do Porto e do Rio, quem me levou foi o professor Arnaldo Saraiva, autoridade em modernismo português e brasileiro. Em todos os encontros, a intensidade de sua presença toda cheia de vida foi sempre uma experiência inesquecível.
Quis anotar o que me marcou no primeiro desses encontros de modo adequado e me vi escrevendo um poema que se esforçava por aproximar-se de sua poesia – a sem propriamente imitá-la – e de retratar sua pessoa – sem propriamente descrevê-la.
Quando contei a Arnaldo, nosso amigo comum, este quis publicar minha tentativa na revista portuguesa Terceira Margem. Fiquei orgulhoso. E voltei a orgulhar-me quando Claudio Leal me disse que a Ilustríssima talvez a reproduzisse.
Acho que se Cabral estivesse vivo eu teria vergonha. Faço canções e não poemas – e, se estes são coisas muito diferentes daquelas, meus erros e acertos no presente exemplo serão do tipo que reafirma essa diferença.
O Poeta em Dacar
(Caetano Veloso)Cabral ombreia o grou coroado:
Sumário confronto sobre a grama
Em frente ao palácio oficial.
Alguns toureiros trazem socorro:
Vêm de seus versos. Muito econômicos,
Nenhum ostenta cores ou cheiros;
Nenhum, sensualidade; embora
Aceso tenham o sexo. Nenhum
Senegaliza. Porém a cola
Que não mascam é como se fosse
A fibra mesma, o osso-poeta
Que sustenta o corpo pequenino
Desse homem desembaraçado
Em sua angústia. Expositivo,
Ele apenas informa —e é um coan—
Sobre a particularidade deles,
Os grous, de, macho ou fêmea, terem
Reações opostas à chegada
De outro animal aqui, este homem
Em seu território: a fêmea avança,
O macho, muito tímido, esquiva-se.
Ou será o contrário, pergunta-nos
O poeta sério e buster keaton.
E conclusivo: um ou outro é
O que ataca; um ou outro, o que foge.
Volta à lajota da varanda sem
Olhar para as aves no gramado
Atrás de si. E muda de assunto.
Fonte: Ilustríssima (Folha)