Caetano Veloso: Um poema para o centenário de João Cabral de Melo Neto

Em comemoração ao 100 anos do nascimento do poeta pernambucano, que será comemorado em 9 de janeiro, Caetano lhe presta uma homenagem

Na minha juventude, João Cabral foi meu poeta preferido. As rimas toantes, a secura, aquele avesso do surrealismo que era o cerne de seu impulso experimental me arrebataram para além do que me parecia ser o mais elevado estágio de poesia: Drummond.

Quando conheci Cabral pessoalmente (no Senegal, onde ele era embaixador e aonde fui com Gil, a caminho do Festac na Nigéria), sua personalidade fascinou-me tanto quanto os seus poemas. Estive com ele mais três vezes depois dessa. Uma no Porto, onde ele servia como cônsul, e duas no Rio: em sua casa e numa leitura/palestra que ele deu ao lado de John Ashbery e Joan Brossa, em evento organizado por Waly Salomão e Antonio Cicero.

A suas casas, do Porto e do Rio, quem me levou foi o professor Arnaldo Saraiva, autoridade em modernismo português e brasileiro. Em todos os encontros, a intensidade de sua presença toda cheia de vida foi sempre uma experiência inesquecível.

Quis anotar o que me marcou no primeiro desses encontros de modo adequado e me vi escrevendo um poema que se esforçava por aproximar-se de sua poesia – a sem propriamente imitá-la – e de retratar sua pessoa – sem propriamente descrevê-la.

Quando contei a Arnaldo, nosso amigo comum, este quis publicar minha tentativa na revista portuguesa Terceira Margem. Fiquei orgulhoso. E voltei a orgulhar-me quando Claudio Leal me disse que a Ilustríssima talvez a reproduzisse.

Acho que se Cabral estivesse vivo eu teria vergonha. Faço canções e não poemas – e, se estes são coisas muito diferentes daquelas, meus erros e acertos no presente exemplo serão do tipo que reafirma essa diferença.

O Poeta em Dacar
(Caetano Veloso)

Cabral ombreia o grou coroado:

Sumário confronto sobre a grama

Em frente ao palácio oficial.

Alguns toureiros trazem socorro:

Vêm de seus versos. Muito econômicos,

Nenhum ostenta cores ou cheiros;

Nenhum, sensualidade; embora

Aceso tenham o sexo. Nenhum

Senegaliza. Porém a cola

Que não mascam é como se fosse

A fibra mesma, o osso-poeta

Que sustenta o corpo pequenino

Desse homem desembaraçado

Em sua angústia. Expositivo,

Ele apenas informa —e é um coan—

Sobre a particularidade deles,

Os grous, de, macho ou fêmea, terem

Reações opostas à chegada

De outro animal aqui, este homem

Em seu território: a fêmea avança,

O macho, muito tímido, esquiva-se.

Ou será o contrário, pergunta-nos

O poeta sério e buster keaton.

E conclusivo: um ou outro é

O que ataca; um ou outro, o que foge.

Volta à lajota da varanda sem

Olhar para as aves no gramado

Atrás de si. E muda de assunto.

Fonte: Ilustríssima (Folha)

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