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Claudio Daniel: A poesia visceral de Sávio de Araújo

Jovem carioca publica livro de poemas que transita entre os temas da subjetividade, a reflexão sobre a linguagem, o amor e o tempo presente, com notável domínio verbal.

Por Claudio Daniel*

O jovem poeta carioca Sávio de Araújo, autor de A Carne da Era

A Carne da Era, livro de estreia do jovem poeta carioca Sávio de Araújo, reúne no título um termo concreto (carne) e um abstrato (era) numa insólita metáfora que resume alguns dos temas que encontraremos ao longo da leitura do volume: o fluir temporal, a gramática do corpo e das sensações, mas sobretudo a carnadura das palavras, o próprio poema elaborado como se fosse um organismo, mais do que um maquinário.

A fusão entre metalinguagem cabralina e subjetividade está presente, por exemplo, na composição intitulada Palavra: “Sigo o método da dor / e faço da palavra / uma antiga opressão. // Desperto / a raiz tempestuosa que cresce / no tempo da escrita // Deixo-a destruir / sonhos inúteis / que lutam por nomes, / pois serei agora / um mar intransponível, / o signo infinito / de idiomas mortos / na língua improvável / de cada palavra”.

A concepção da poesia como algo orgânico, visceral, atravessa toda a poesia de Sávio, que não faz economia de referências a plantas, insetos, animais e peixes, reelaborados como seres semânticos, signos vivos de um pequeno planeta textual, concebido “com a sua própria fauna e flora”, como queria o poeta chileno Vicente Huidobro. Na peça intitulada Gérmen, lemos estas linhas: “Sob o sol, acaricio a folhagem / como pelo nas costas de um animal, / a existência está viva / ruminando números e palavras. / Essa fertilidade / é adubo virando terra. // E quem, afinal, tem coragem / de ser o próprio alimento? / Criar raízes que respirem como guelras”.

Sem dúvida, estamos diante de um poeta com plena consciência das possibilidades plásticas e musicais da arquitetura poética; um autor que traduz o seu mundo interior e a reflexão sobre aquilo que o cerca sem abdicar da beleza, das mutações do verso, de suas sutilezas e cintilações. Sávio, que além de poeta é músico, está atento aos timbres e às cores das vogais, como queria Rimbaud, em sua Alquimia do Verbo: a dimensão logopaica, a “dança do intelecto entre as palavras”, comparece aqui, mas não como discurso filosófico, e sim como partitura e pintura. Assim, por exemplo, neste breve poema, dividido em três quartetos, intitulado Afirmação: “Meditarei os dias / nessa terra aberta / pela saudade sua. // Engolirei a água / em fontes primitivas: / jorro sem partida. // Onde quer que esteja / levantarei meu corpo / sob o sol do sim”.

A temática lírica, porém, é a que se impõe, no conjunto dos poemas, não apenas pelo número maior de textos que tratam do amor, mas sobretudo pela abordagem, que evita a facilidade inerente ao tema. Temos aqui peças onde o amor se corporifica na linguagem, na materialidade semântica, em toda a sua sensualidade imagética e sonora: “Tua alma estranha / grita dentro de mim. // És agora um livro nunca lido / com a face de nosso destino / e tudo que nele consta / é o futuro dessa vontade” (A Espera dos Amantes); “Luz da noite, / prata azul lunar / nas caudas negras de teu rosto. // Fendas cintilantes / entremeiam nossos atritos. / Músculos, fibras tesas, / gestos cálidos, líquen. // Somos agora a justificativa para o acaso que nos une” (Neblina); “Tua beleza, / cavalo em fuga que sigo de longe. // Teus olhos, / traços da liberdade / em bordas escuras” (Rara); e sobretudo nesta belíssima composição: “Tu ainda não existes / mas lembro de ti / todos os dias. // Ouço teu nome / em sussurros frágeis / na boca do tempo. // Esperarei em mim / como a pantera / rondando o vazio” (Distância).


 

Para além do lirismo, a consciência do tempo presente é outro vetor essencial no livro de estreia de Sávio de Araújo, a começar pela impactante composição que dá título ao volume: “Sou eu os esquecidos, / carne da própria era, corpos cicatrizados / pelo sal da insurgência. // Uma vida entregue / a desmerecimentos, / espelhos estranhos / e duplos insensíveis. // Nossas horas: / chacinas esdrúxulas / na tediosa aurora / de homens comuns. / Soam ledos os enganos / que nos encurralam, / em todos os fins / vejo o triunfo da obra. // E os séculos se tornam / a passagem das bocas / repetindo tais feitos / nos lugares onde falam” (A Carne da Era).

O livro não é apenas o conjunto de poemas de um jovem autor, que apresenta aqui os seus primeiros exercícios poéticos; trata-se de obra densa, madura, de um poeta que já se coloca entre as vozes mais interessantes da nova literatura brasileira – aquela comprometida com a escrita enquanto arte.

* Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutor em Teoria Literária pela UFMG. É colaborador do Prosa, Poesia e Arte.