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Claudio Daniel: O poder encantatório das palavras 

Poemas de uma Palavra Só, novo livro do poeta e artista plástico Francisco dos Santos, surpreende pela originalidade temática e estética, pela ironia e sarcasmo, mas sobretudo pelo diálogo estabelecido pelo autor entre a poesia e as artes visuais, com evidente influxo das vanguardas construtivistas da segunda metade do século 20.

Por Claudio Daniel*

Francisco dos Santos

Jorge Luís Borges criou uma cidade imaginária habitada por uma estranha comunidade cujo idioma era composto apenas por monossílabos. Não havia frases, pois cada palavra – composta só de consoantes, uma vez que nesse idioma singular não havia vogais – poderia ter vários significados, conforme a sua pronúncia e os gestos que acompanham a fala. Assim, escreve o autor argentino no relato O Informe de Brodie, “a palavra nzr sugere a dispersão ou as manchas; pode significar o céu estrelado, um leopardo, um bando de aves, a varíola, o sarampo, o ato de esbanjar ou a fuga que se segue à derrota”.

Em outra fábula, intitulada Tlön, Uqbar,Orbis Tertius, Borges imagina um planeta desconhecido cujos rapsodos compunham poemas de uma só palavra. Estas duas histórias, que têm em comum a crítica irônica aos modelos de organização da sociedade – logo, são textos políticos, à maneira individualista borgiana – trazem ainda uma curiosa reflexão sobre a língua e a linguagem, oculta sob o disfarce da caricatura, ironia e sátira. Em ambas sociedades distópicas, o “poder encantatório das palavras” – para citarmos a frase de Mallarmé – é tão intenso que dispensa a companhia de artigos, conjunções, preposições e até de verbos; uma única palavra, polissêmica, era capaz de sugerir toda uma variedade de sentidos, pela sua entonação musical, plasticidade e cumplicidade corporal, cabendo ao ouvinte interpretar o significado dos gestos e da voz.

O suposto “primitivismo” de tal comunicação sonhada pelo autor de Ficções parece-nos antes moderno, pelo seu caráter de obra aberta, sugestiva, plural, que solicita a participação do ouvinte para a construção dos significados. A modernidade da palavra-coisa borgiana está presente, por exemplo, no álbum Colidouescapo, de Augusto de Campos, pequeno álbum composto de folhas soltas, cada uma delas trazendo impressa uma sílaba ou “pedaço” de palavra. Como as folhas podem ser intercambiadas em diferentes sequências pelo leitor, de forma aleatória, é possível a construção de palavras inusitadas, pela recombinação de morfemas (destinto, desescanto, resiscanto, etc.). Essa operação de desmembramento e metamorfose semântica, é evidente, tem um caráter crítico e criativo: ao mesmo tempo fratura a construção linear dos textos, para a surpresa do leitor, e aponta para novas possibilidades de comunicação poética.

Estes são os pensamentos iniciais que me ocorreram durante a leitura de Poemas de uma Palavra Só seguidos de uma nota que pode parecer excêntrica mas não é, novo cadinho lírico do poeta e artista plástico Francisco dos Santos, que sempre nos apresenta textos inquietos e insólitos, com alto teor de provocação estética. Temos aqui um conjunto de 21 palavras-poemas, cada uma disposta em uma página, salvo alguns casos em que o autor utiliza a página dupla, sem o intervalo do espaço em branco, e uma sequência sob o título “quatro poemas” composta de de____serto, mmmar, borboleta e naufr´agio.

As peças do conjunto são dispostas na horizontal, na vertical, inclinadas, de baixo para cima, em diferentes corpos e fontes, com itálicos, negritos, por vezes com separação silábica e a distribuição das letras ou sílabas no interior da página, ou ainda em duas páginas, conforme a intenção estrutural e conceitual. As palavras são apresentadas em tipos negros sobre fundo branco, ou ainda em tipos brancos sobre fundo negro. Em algumas composições, as palavras adquirem ainda um design diferenciado, ou incorporam a presença de sinais como os parêntesis, rompendo os limites entre escrita e grafismo. A fragmentação da frase, da palavra, da sílaba, é o princípio compositivo de toda a obra, que corresponde, de maneira icônica (e irônica) à fragmentação da linguagem, do pensamento e da própria sociedade, nos confusos tempos em que vivemos.


Detalhe da capa de Poemas de uma Palavra Só

Esta é, portanto, uma obra contemporânea, no sentido não apenas cronológico, mas cultural. A primeira palavra que surge diante de nossos olhos é ( ( ( música ) ) ), com a distribuição de três parêntesis à esquerda e à direita da palavra, numa representação gráfica da difusão do som; em seguida, temos escada, fragmentada em três sílabas, colocadas na lateral, em ordem invertida, para simular, de maneira isomórfica, o próprio referente; em outra peça, a palavra asas é dividida em suas quatro letras, cada uma colocada em uma das laterais da página (a s em cima, s a em baixo); na composição mais extensa do volume, a palavra árvore é repetida 50 vezes, numa representação geométrica que ocupa duas páginas do livro, simulando o próprio objeto vegetal. Mais à frente a palavra se torna imagem figurativa, na composição que apresenta uma caveira estilizada, que pode ser a morte da palavra, do discurso, da comunicação ou simplesmente um aviso do perigo que nos cerca.

É evidente que a poesia visual de Francisco dos Santos também assimila e desenvolve procedimentos técnicos apresentados pelas vanguardas da segunda metade do século 20, em particular a Poesia Concreta e a Poesia Experimental Portuguesa (PO-EX) de Ana Hatherly e E. M. de Melo e Castro. Mas essa “incorporação” (termo usado também em transes de cerimônias afro-brasileiras) acontece de modo bastante original, regida pelo Exu das Sete Ironias. A construção do sentido das palavras-poemas acontece não apenas no interior de cada página, mas também na sequência das peças, na relação entre uma composição e outra: assim, por exemplo, próximo à palavra espelho temos corCunda, refletindo toda a deformação ou distorção vigente em nossa triste época. No final do volume, temos a nota que pode parecer excêntrica mas não é, texto recortado e especializado em que a frase completa reaparece como unidade do discurso, embora sem a continuidade linear de um texto normativo.

O restante, leitor, é para a sua leitura, aventura e descoberta, sem bússola ou guia de viagem.

* Claudio Daniel, poeta, tradutor e ensaísta, é formado em Jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, com mestrado e doutorado em Literatura Portuguesa pela USP, além de pós-doutor em Teoria Literária pela UFMG. É colaborador do Prosa, Poesia e Arte.