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Publicado 16/03/2007 16:49 | Editado 13/12/2019 03:30
Sem dúvida, uma das dificuldades com a qual nos defrontamos para a representação viva de obras clássicas é a excessiva quantidade de pó e mofo que repousa sobre elas. Distantes das mazelas cotidianas dos simples mortais, elas passam a ser, então, erroneamente consideradas como um patrimônio cultural imutável. Ora, o caráter fundamental e a grandeza dessas obras residem sobretudo na análise e observação agudas do comportamento humano; na universalização de processos singulares presentes no desenvolvimento da cultura ocidental, e nos traços novos e criativos com que registraram aspectos, motivações e contradições essenciais da relação entre os homens. Em outras palavras, a força de intervenção de um texto clássico é criada precisamente pelo seu amplo poder inventivo e seu espírito surpreendentemente crítico e combativo.
Assim, ao adaptarmos um texto clássico, escrito noutra época e noutro lugar, é necessário que não nos deixemos enganar pela auréola de grandiosidade heróica que os envolve, típica da tradição teatral cultivada até os nossos dias pela estética burguesa. É preciso, sim, resgatar de acordo com o contexto histórico onde a nova encenação será inserida, o caráter essencialmente vivo, humano e preciso dessas obras, o impulso ativo e criador que almeja representar e reproduzir a realidade.
O falso respeito com que alguns encenadores tratam determinadas obras contribui enormemente para a perpetuação de uma visão superficial e hipócrita do chamado texto clássico, onde nunca faltam uma certa pomposidade e um ritmo arrastado e monótono, supostamente reflexivo. O teatro, para ser vivo, precisa estar apoiado nas reais necessidades de comunicação de seu tempo e dos homens que o produzem. O respeito sacrossanto ao passado pode muitas vezes nublar e mascarar a realidade, em detrimento de uma relação mais direta com o presente. Ou segundo, Bertolt Brecht, “o autêntico respeito que estas obras podem e devem exigir, requer que desmascaremos o respeito hipócrita, servil e falso.”
Brecht, aliás, foi um dos encenadores deste século que mais se empenhou em resgatar o frescor original e o espírito combativo presentes nos grandes textos clássicos, fosse através de encenações revolucionárias para a sua época, fosse através de adaptações que por vezes alteravam significativamente o enfoque principal escolhido pelo respectivo autor. Brecht adaptou Shakespeare, Lenz, Sófocles, Molière e Goethe, entre outros.
A sua adaptação de Antígona de Sófocles, foi feita a partir da tradução de Friedrich Hölderlin, montada em Viena durante o período nazista e que colocava em primeiro plano os aspectos místicos do texto, contrapondo a sensibilidade feminina (Antígona) à razão masculina (Creonte). Brecht manteve a estrutura básica, mas modificou bastante o original, dando relevo à queda do Império de Creonte e levando assim o público a relacioná-lo com o fim do III Reich. Sua intenção era aproximar a trama, perpetrada por Sófocles, da realidade alemã, pois o espetáculo estreou em 1948, numa época em que na Alemanha “o medo do novo se alternava com o medo da volta do antigo”. A montagem foi toda fotografada e documentada e, com esse material, Brecht criou um modelo de adaptação para servir como guia e estímulo a outras encenações.
A par disso, Brecht criticou também as falsas adaptações, de índole puramente formal que, com seus efeitos sensacionalistas, suas entonações patéticas e solenes, serviam apenas para obscurecer e banalizar as obras clássicas, afastando-as assim ainda mais do público moderno. À crítica de que a utilização de um modelo restringiria a criatividade artística, Brecht responde da seguinte maneira:
“A moderna divisão do trabalho modificou em vários aspectos importantes a atividade criativa. A criação tornou-se um processo coletivo de trabalho, um continuum dialético, reduzindo-se assim a importância da invenção original isolada. O ator que se utiliza deste modelo acrescentará obviamente a sua visão pessoal e terá plena liberdade para realizar modificações, sobretudo as que o tornem mais fiel à realidade. O propósito do modelo não é propriamente fixar uma forma rígida de representação.”
Pelo contrário, sua importância reside na confrontação com o processo de criação de cada ator e encenador, de acordo com a realidade sobre a qual pretendem refletir.
Percebe-se atualmente nos grandes centros brasileiros uma certa tendência a remontar textos clássicos, já consagrados e conhecidos do grande público. As razões podem ser variadas: a tentativa de uma discussão profunda sobre questões arquetípicas que continuam afligindo a humanidade; o suposto status alcançado pelos encenadores ao verem os seus respectivos nomes ao lado dos autores mais renomados da cultura ocidental, ou até mesmo o comodismo de não querer apostar em autores novos, com medo de prejuízos econômicos e de possíveis críticas destrutivas do público especializado. Há também opiniões extremas. Gerald Thomas, por exemplo, afirmou certa vez numa entrevista à Folha de São Paulo, que nenhum texto do passado seria capaz de retraduzir a complexidade da atualidade, pois “a história não vai para a frente se não se criam textos novos”.
Polêmicas à parte, sabemos muito bem que uma sociedade não avança se não repensar o seu passado, e para isso nada melhor do que recolocar em cena textos que discutiram tão profundamente suas respectivas épocas. Ao mesmo tempo, é preciso estimular a existência de obras que reflitam de maneira direta e objetiva sobre a nossa realidade circundante, a fim de que nos defrontemos com os espelhos que forjarão a nossa evolução cultural.
Desse modo, o público poderá apurar a sua sensibilidade artística, exercitar o seu senso crítico e sentir prazer em participar desse ritual criativo e essencialmente humano. Por sua vez, assistir à montagem de um texto clássico eqüivale de certa forma, a ouvir uma orquestra tocando Bach, por exemplo; para tal é preciso apurar os sentidos, afinar a percepção e estar disposto a captar os ecos daquilo que a humanidade criou de mais perene e de mais efêmero em toda a sua história.
O mais importante na encenação de um texto clássico não é, portanto, tentar transmitir ao público aquilo que o autor tencionou expressar aos seus contemporâneos, através de uma determinada fábula, mas aquilo que nós, filhos de nossa época, poderíamos comunicar – por meio de registros teatrais feitos por um indivíduo de uma outra época e muitas vezes de um outro lugar – a um determinado público, num determinado momento e num determinado contexto cultural.
Evidentemente, o conhecimento das circunstâncias históricas originais possibilita uma maior precisão nos paralelos que porventura se possam traçar entre dois momentos da história da nossa cultura, mas o compromisso com o presente deve sempre se sobrepor à mera exposição de fatos de um passado longínquo.