Três anos antes da Revolução Mexicana (1910), nascia uma das mulheres que romperiam padrões para criar um novo conceito de identidade nacional. Frida Kahlo cresceu numa pátria em conflito e – como o México – sobreviveu a rupturas profundas. Assim, deu cor, textura e sentido à revolução na política, na arte e na vida.
Por Mariana Serafini
Publicado 07/07/2017 18:50 | Editado 13/12/2019 03:29
A última quinta-feira (5) marcou os 110 anos de nascimento de Frida Kahlo. Esta figura, que um século depois se destaca como um ícone pop e inspira gerações de mulheres mudo a fora, foi muito além da estética exótica: rompeu padrões e atuou politicamente – junto a outros artistas mexicanos – para a construção de uma nova identidade nacional em um país que emergia da revolução vitoriosa, cheio de esperança.
O começo da vida adulta de Frida coincide com o México pós-revolucionário, um país marcado pela resistência camponesa e indígena, cuja construção de uma identidade nacional fiel a esta imagem era latente. Jovem engajada e com consciência social, a artista se filiou ao Partido Comunista, onde conheceu outros artistas dispostos a romper conceitos burgueses e desenvolver uma arte voltada para o povo.
Estes artistas modernistas, inspirados no período de resistência, romperam com os padrões estéticos europeus e se voltaram para a cultura popular mexicana. O movimento buscou nas raízes indígenas e na América pré-hispânica uma estética própria, e deu origem a um novo conceito de identidade nacional, baseado principalmente na plasticidade da revolução.
A arte de Frida emerge neste contexto, mas se mescla à vida pessoal dela, marcada por doenças e um acidente grave que deixou sequelas incorrigíveis até seus últimos dias. Sobrevivente dessas rupturas profundas, a artista deu cor e textura às suas angústias pessoais e à luta de uma geração de homens e mulheres herdeiros de Emiliano Zapata e Pancho Villa.
Com intensidade, Frida pintou as dores de uma mulher que cem anos depois permanece a frente deste tempo, dado seu apego à liberdade humana. Mas ainda que seu corpo e seus fantasmas parecessem bastar para a composição de uma obra complexa e profunda, a artista foi além e retratou as mazelas de um México marcado por contradições.
Apesar de nunca se declarar feminista, sua lealdade às próprias convicções e à liberdade fizeram dela um ícone da luta das mulheres. Além disso, retratou em sua obra, de forma visceral, a complexidade do universo feminino. Suas roupas repletas de cores e bordados, inspirados nas mulheres indígenas, ganharam o mundo e, independente de estar em Nova York, Detroid ou Paris, demarcaram a identidade mexicana de uma artista que se tornou universal por pintar as angústias de seu povo e de seu tempo.
Quando a crítica tentou qualificar sua obra como “surrealista”, a artista foi categórica ao rebater: “pensavam que eu era surrealista, mas eu não era. Nunca pintei sonhos. Pintava minha própria realidade”.
Ícone pop
Com todo este legado, parece inacreditável que Frida seja vista – não raramente – apenas como uma figura exótica. Hoje o rosto marcante de sobrancelhas grossas e nenhum sorriso estampa uma infinidade de produtos: canecas, camisetas, ecobags, pelúcias. Em meio a isso, curadores têm o desafio de despertar o interesse do público pela arte e não pela “pintora de canecas”, como disse certa vez um curador do Metropolitan Museum of Art, de Nova York, durante um simpósio na Pinacoteca de São Paulo.
O especialista falava durante uma apresentação sobre como “conduzir o público em uma exposição”, sobre a dificuldade de fazer as pessoas se interessarem pelas telas, e não apenas em tirar fotos nas galerias e correr para a loja de suvenir para levar embora um imã de geladeira com o rosto de Frida Kahlo estampado em baixa qualidade. Segundo ele, é “triste” que a apropriação mercadológica da figura da artista tenha chegado neste nível.
O casamento conturbado com o muralista Diego Rivera, os relacionamentos extraconjugais com mulheres e homens, os três abortos – decorrentes das sequelas do acidente na juventude – podem ter marcado Frida como uma figura exótica. Mas esta mulher sobrevivente de rupturas é muito mais que isso. Dedicou sua vida e sua obra à construção de uma outra forma de ver o mundo, “abajo y a la izquierda, donde está el corazón” [abaixo e à esquerda, onde está o coração].
Veja a galeria de imagens com 13 quadros de Frida Kahlo: