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Italo Bianchi: Toureiros e cowboys

Coisa de 15 anos passados, estávamos eu e minha mulher Sonia na Espanha, ou, mais precisamente na Catalunha, curtindo a encantadora Barcelona, uma das mais cultas cidades do mundo, quando eclodiu um movimento que englobava gente das mais diversas classes

De um lado, estavam pessoas revoltadas com aquele espetáculo de um animal que entra na arena condenado à morte, mas que antes terá que ser torturado com todo o requinte – para sumo prazer de uma galera exultante com os golpes certeiros das lanças dos picadores e as farpas dos bandarilheiros – para, então, ser entregue, enfurecido mas já moribundo, ao heróico toureiro que, após cumprir uma elegante coreografia de provocações e de esquivas, tratará de matá-lo com uma certeira estocada entre as espáduas.


 


Do outro lado, estavam os conservadores (vamos chamá-los assim), defendendo a prática do macabro ritual, usando os argumentos mais nobres: tradição, identidade cultural, manifestação artística, sublimação estética… Por incrível que pareça, do lado dos conservadores, apresentavam-se covardemente muitos intelectuais, exibindo-se em jornais, em revistas e na tevê, recitando o belíssimo poema Llanto por Ignácio Sánchez Mejías de Garcia Lorca ou mostrando fotos do divino Picasso inebriado com cenas daquele cruel espetáculo. No entanto, nenhum defensor das touradas admitia, como movente do espetáculo, o prazer íntimo e inconfesso de um monte de gente que curte o prazer de assistir a espetáculos de tortura. Se ao longo de toda a história da humanidade, nós temos notícias da prática freqüente de torturas de gente feita por gente, levando ao delírio de satisfação massas embrutecidas sob os mais diversos pretextos (acho suficiente lembrar a salvação das almas da Santa Inquisição ou a depuração étnica nazista), o que dizer então da judiação de bichos indefesos?
 


 



Felizmente, na atualidade acontece que cada vez mais certos países – em conformidade com seu grau de civilidade – tomam medidas legais (ou pelo menos cultivam hábitos) para poupar os animais de qualquer tipo de maltrato ou, muito especialmente, de qualquer forma de tortura. Mas houve tempo – e acho que ainda ocorre – que a indiferença de muitos cavalheiros em relação às dores e às mágoas de animais domésticos ou domesticados era, e ainda é, um sinal de machismo.
 


 


Mas, após esse longo preâmbulo, vamos passar ao motivo que me levou a escrever esta breve crônica. Apesar de não ser habitué do gênero, descobri que está se desenrolando por aí uma novela que, como sempre acontece na chamada “teledramaturgia”, sobrepõe e cruza diversas histórias, mas que explora como trama condutora o meio dos rodeios e a figura indefectível de um cowboy brasileiro. Como todos nós sabemos que temas, episódios, cenas e personagens produzidos para este gênero de entretenimento são metódica e constantemente submetidos à opinião pública e adotados ou mantidos em função da sua aprovação, vejo-me obrigado a deduzir o seguinte: na sua maioria, as pessoas gostam dos maus-tratos infringidos a touros e cavalos que recheiam os gestos de bravura dos mocinhos.
 


 


A esta altura, alguém pode retrucar que este tipo de espetáculo é largamente praticado e apreciado na América do Norte, um país dos mais civilizados do mundo, isto é, um dos mais desenvolvidos do ponto de vista socioeconômico, o que estaria contrariando a minha afirmação que usei dois parágrafos acima. Que me desculpem os meus eventuais leitores desatentos, mas eu falei do amor e da sensibilidade para com os animais que ocorre nos países de elevado grau de “civilidade”, uma palavra que significa algo mais do que o mero poder socioeconômico.