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Jose Varella: Da ilha do Marajó aos navegantes do futuro

“… consternação em saber que em breve toda aquela diversidade de ambientes e vidas (…) que acabávamos de catalogar iriam desaparecer, sucumbindo ao projeto da hidrovia”.
           


Sejam bem-vindos, cidadãos do Brasil brasileiro!
O povo das águas vós saúda desde a boca das amazonas
Venham e voltem em paz, façamos escambo bacana:
A solidariedade e amizade fique de ambos os lados
Da balança
Se não a gende dança…
Com o brinde duma boa esperança do futuro
Em pacto seguro
A demanda popular atendida com razão e consciência
Voltem depois ao Planalto e Palácio dos Despachos em Belém
Bem carregados de gratidão das Ilhas filhas da pororoca.


 


 


Eu sou ainda hoje em dia
Aquele primitivo inventor das primeiras letras
E pinturas rupestres da Planície amazônica
Cansado de contar ao vento e à correnteza do rio-tempo
Um segredo profundo que vem dos princípios
Do mundo
A escritura das pedras na serra Paytuna
Em vias de se transformar
Em cerâmica de Ananatuba cujo vestibular
Na demanda da piracema em busca de cardumes
O ensaio geral da arte primeva Marajoara.


 


 


Teoria da conversão da pedra bruta em lição orgânica
Da madeira tropical renovável
Capital natural da amazonidade pós-industrial
A surrealidade barroca do barro equinocial
Da pintura corporal ao envelope de terracota
E a tanga matriarcal da cerâmica marajoara
A universidade livre do camutim sagrado
Passaporte para eternidade na contemplação
De astros e estrelas sobre a linha do equinócio
No Ócio o cio é a parte mais complicada do negócio,
(dizia um índio malmente catequizado acusado de herético
e preguiçoso diante da visitação do Santo Ofício na Bahia
De todos os Orixás,
“Deus criou o homem para dormir e sonhar”).
Por Zeus, com efeito! Pobre índio ignorante de teologia
Da Inquisição.
Sonhar que somos por acaso um pássaro ou um peixe sobrenatural
Talvez um deus terrível como o Trovão…
Da arquitetura da palafita ao monumento arqueológico do “teso”
Transmutação natural da matéria em espírito telúrico:
Passagem secreta da animalidade à humanidade.


 


 


Sou o Homo sapiens tapuya da ingênua classificação
Científica (posto que iluminista-racista)
Do naturalista da Viagem Philosophica de 1783
Cuja cabeça degolada e empalhada como troféu de caça
O sabio despachou pela nau da vez para Lisboa
Para estudos sizudos da Universidade de Coimbra…
Deixa estar que antes de topar com os matabugres d'el-Rei
A escapatória da poligamia e as índias prolíficas
Como formigas deram-me a chance
Da descendência de uma prole enorme de cabocos
Parrudos com que sobreviver ao amanhã
Desde o reservatório genético do Xingu:
Sou algo indizível com cara de gente e ar de caruana
Através do tempo e do espaço em diversas culturas e gerações
Algo sou de inexplicável no limite de uma vida apenas
Um fenômeno coletivo no arco do tempo arqueológico
Que neste recanto insular do mundo quer dizer alguma coisa.


 


 


Eis a última instância da Demanda das demandas!
(para não dizer o desenvolvimento eco-cultural
versus desenvolvimento colonial insustentável).


 


 


Entre os hemisférios Norte e Sul na margem extremo-ocidental
Do Atlântico equatorial
O Arquipélago assiste a uma dialética de titãs:
O oceano imenso quer entrar à montante das pororocas
Conquistar a Amazônia verde até o sopé andino,
O enorme rio quer vencer a Amazônia azul para ganhar o mundo.
Nada mais lógico em ser Marajó o umbigo do planeta Água.
Jóia da coroa no patrimônio natural e cultural dos Brasis.


 


 


A um povo sem-história toda migalha de memória e invenção
É mais valia da civilização tropical
Toda atenção é como uma barcada de afeição…
Vale por remo e canoa boa,
Se houver porto seguro será melhor do que ficar a pé
Na beira do igarapé de maré seca
A ouvir canto de saracura e frescura lesa
Pela fé da mucura em noite escura sem lamparina
Esta menina da rede rasgada, sem uma pílula d'aspirina
Na hora da febre malária e o compadre na jebre
Caçando encrenca por precisão de patrão que preste
Muriçocas mil dando coça ao enjeitado do mercado
Livre,
Que Deus o livre da peste, da fome e da peia!…
Esta outra, diz-que, mais feia do que puxar cadeia.
Seu Raimundo não me deixa mentir, o Viramundo
Caduco de tonta tortura na noite escura
Asilou-se no museu do Gallo depois de fazer terror
A muito escravo fujão, valei-nos São Sebastião!
Povo marcado pela extinção dos Gados do rio, o peixe-boi,
A caçoada dos sapos no alagado: cadê o boi?… cadê o boi?
A gia não pia por medo de cobra, mas quando pode
Chateia o mondongo: bem feito! bem feito!
Quem te mandou? Quem te mandou, acabar o pirarucu?
Dá uma de delegado a curuja murucututu…
Piranha sem vergonha, não rasga rede do pescador!
São vozes dos “centros” que a ordem do Progresso quer desbravar
Por via da Hidra, dragas e balsas em busca de grana e fama
Sem pisar na lama, nem saber o que há além da Jebre
Pai e mãe da febre e do alastrim (Cruz credo).


 


 


Por isto o caboclo que vos fala serve de mestre-sala
Na parte da Esmolação do Glorioso santo da Cachoeira do rio Arari
Na falta de quem melhor represente a gente ribeirinha
Filha das Ilhas amazonas.
Sejam bem-vindos os embaixadores da República federativa.
Mensageiros do Presidente brasileiro de luta sindical
Entendido PhD na amargura do povo trabalhador
Companheiros e companheiras da guerreira
Governadora paraense que vence o preconceito
Autoridades competentes que ouviram o bispo
A quem os marajoaras foram se queixar depois da missa
Do desconforme atraso humano destas ilhas
Que foram as primeiras em cultura do sol e da Chuva.
A gente sabe que todo santo ajuda a quem paga promessa
Direitinho desde menino
Mas porém a nossa pressa é de quem véve avexado por demais
Por isto às vezes o santo desconfia de esmola grande
E caboco não é besta
Acende uma vela a Deus e outra ao Diabo
A ver quem primeiro obra o milagre…


 


 


Somos os caboclos ribeirinhos remanescentes
De séculos de maltrato desde o mato ao “índio” nheengaíba
Vítimas preferenciais do cativeiro do Grão-Pará
Só ultrapassado pela mina funda de “ouro vermelho”
Extraído a muque do Rio Negro pra serventia da Casa das Canoas
Cuja ferida não sarou na alma desta gente descendente
Do bárbaro, pagão e “canibal” ancestral
(diziam os inimigos brancos, tupis e mamalucos)
Falador da língua ruim: o inventor da cerâmica de 1500 anos
Afilhado da cobra Jararaca, mestra da zarabatana e da emboscada…


 


 


No fim do mundo
Por sina cruel numa guerra metafísica entre pajés rivais
De aldeias inimigas, o honorável homem do Pacoval
Acabou tendo fama de “ladrão de gado”
Entre matar sua fome ou matar boi do senhor destes campos
Lavrados
Sem outra escolha na baronia da Ilha Grande de Joanes.
Deste um desvalido foi defensor o padre italiano “Giovano”
Mandado, paresque, nos rastos do payaçu Antônio Vieira
Por São Pedro Safadinho padroeiro do folclore marajoara
E padrinho dos pescadores da vila do Jenipapo,
Do remoto antepassado dos cabocos foi advogado o Padre grande
Antonio Vieira,
Que caiu na besteira de deixar a Corte para vir ao Maranhão e Grão-Pará
Pregar o Sermão aos Peixes para cegos desta colônia imensa…


 


 


Eis a notícia feia que se esconde na teia do Paraíso perdido
Debaixo da sigla IDH: Índios Danados pela História…
O remédio é lembrar o ano da Graça de 1655 da abolição
Que nada aboliu nem aluiu na escravidão dos índios
As pazes do rio dos Mapuá 1659 em breves linhas avacalhadas
Por historiadores oficiais até o Diretório dos Índios:
Aqui d'el-Rei!
Quebrou o pau e parou o tempo das sesmarias
Ao sesmo e sesmeiro El-Rei doou ferros a derrubar a mata
A pata do boi para amansar a terra virgem, cavalo a descontar
A lonjura, a tapuia cativa por amásia para garantir prole ao colono
Bisonho feito por acaso
Dono do pedaço, senhor de escravos boçais (diz-que
para os educar…).


 


 


Na contra-maré os pajés em confederação metafísica
Com os bichos-do-fundo, e os padres na fronteira
Entre o bem e o mal.
Quem catequiza quem no fim da história?
Eis a imprevista invenção dos “extraídos do mato”,
Os Cabocos sonsos como o diabo….


 


 


História escassa em documentação e verdade,
Não anda uma polegada sem muleta da imaginação.
A fraude, o abuso, a Corrupção da exceção da lei
Converteram-se em regra não-escrita
Sobre o espírito e a letra da lei de 1655,
Minto:
O costume desumano era a própria Lei acima da lei escrita
Imposta pela Corda e o Baraço…
Quem sabe agora o que isto quer dizer?
Podiam ser na Modernidade
A “corda” da propaganda e o “laço” do cadastro
De devedores inadimplentes de cartão de crédito…
Liberdade ainda que tardia… tal dia era o Batizado
“Abolição dos cativeiros” queria dizer “guerra justa” e “resgate”,
Caça infame ao homem da selva livre por natureza
Para o fazer dele escravo sem piedade na Cidade,
Do antigo crime amazônico de lesa humanidade
Não se pode isentar o Estado-Colônia nem os padres
Do Padroado Português que ficou freguês das freguesias
Com seus Donos e Donas montados no cangote
Da gente sem eira nem beira
A concordata entre o Trono e o Altar
Apesar das boas intenções
O inferno verde
Pavimentou transamazônicas mil por vias tortas
Muito menos os iludidos colonos para escapar da míngua
Não podem ir direto ao Céu com tantos pobres que fizeram
Na rica terra dos Tapuia
Para eles os teólogos arquiteraram o Purgatório
Pois o mundo civilizado os mandou “civilizar” Índios
E cristianizar Negros a peso de chibata.
Por conseguinte:
Não é decente dar carta branca a quem torturou pardos e pretos,
Nem seria justo mandar ao Inferno quem com tantas penas
Aumentou as fronteiras da Cristandade…


 


 


No imaginário país das Amazonas não se deve ser indulgente
Em causa própria sem primeiro perdoar a Dívida
De terceiros e quartos mundos e fundos.


 


 


“Que se implante a moralidade ou que nos locupletemos todos”
Sérgio Porto, autor do Samba do crioulo doido:
inspiração ao carimbó do cafuso confuso e o brega do caboco aloprado.


 


 


Com que pouca roupa a santa madre Civilização
Que nos deixou cheios de pecado e vergonha de andar nu
Se atreve agora a dar lição na quentura da Terra imatura?
Uns engrossam a voz com ameaças do aquecimento global
Já pensando na “internacionalização” da Amazônia…


 


 


Quem acreditaria que se fossem esses novos brancos
Donos destas matas e destes rios
Fariam eles menor estrago aqui do que já fizeram lá?


 


 


Tudo é possivel para salvar e desenvolver a Amazônia…
Dos amazônidas não se fala grande coisa:
Não querem que a gente recobre a memória dos 400 anos
A invenção do “espaço vazio”…
Não atentar que a tutela oferecida é o novo nome da velha Colonização.
Outros falam bonito para o reino das nuvens
Assim se passam os dias e as noites
Desde a Primeira Noite do Mundo no reino da Cobra grande…


 


 


Não perguntem a um caboco aonde se acha essa tal “Amazônia”.
Aqui todo mundo é parente uns dos outros e habita terra de gente
Ribeirinha:
Somos marajoaras, xinguanos, tocantinos,
Gente do Tapajós, do Araguaia, do Guajará…
Tudo isto rio abaixo no Estado do Pará
(sem falar no Amapá, o Maranhão pré-amazônico, Tocantins,
Mato Grosso, o formidável Amazonas, Roraima, Acre,
Rondônia e outras Amazônias pan-amazônicas).
Amazônia é coisa de branco, mapa de Tordesilhas
Filhas da cartografia imaginária
Capitanias hereditárias etecetera e tal
Pra inglês ver…
A nós o Ver-o-Peso e a academia do peixe-frito
Sem grito, com azeite de patauá.
O que é que há, seu tamanduá?
Enquanto pescadores sem memória estendem a linha
Em busca do peixe nosso de cada dia com caldo e farinha
Da ponta da Tijioca ao Cabo Norte a mesma sorte
A enorme boca do rio fala com voz de assombro
O feito ancestral do conselho de caciques
Anajá, Aruã, Guaianá, Karaboka, Mapuá, Pixi-Pixi e Tucuju
A expectativa da liberdade dos índios
Sempre iludidos em suas esperanças
Demanda da “terra sem mal”
Antropófagos tupinambás movidos por profetas medonhos
Porto do sol
O desejado Araquiçaua prestes a ser conquistado
Na margem oposta da baía
Boca do Arari vista da Ilha do Sol
Destas confundidas águas surdiram-se utopias, sonhos, visões
Conflitos e injustiças em quantidade a partir da Cidade:
Temos aqui o mare nostrum mediterrâneo do Grão-Pará.


 


 


Por acaso ou obra da Divina Providência, a pax marajoara de 1659
Verso duma guerra impossível de vencer
Reverso duma paz difícil de acreditar.
Vale a memória do cacique Piié dos Mapuá
Raro nome indígena resgatado da prolixa crônica da Companhia de Jesus
Na ilha dos Nheengaíbas ou Marinatambalo, dos Aruans, Joanes,
Marajó, aliás Analau Yohynkaku…


 


 


Termina a formação territorial amazônica pelo ato (esquecido) dos Nheengaíbas
Reiterado e homologado historicamente por seus descendentes caboclos,
Muaná, 28 de Maio de 1823, Adesão do Pará à Independência do Brasil
(a verdadeira data magna do paraensismo).
O Pará do Brasil sentinela do Norte, parte essencial da República Federativa
Brasileira.


 


 


Quem tem medo da história da História do Brasil?
Por acaso os herdeiros dos sans-cullote não são eles fiadores da República em França?
Como podemos nós brasileiros ouvir a Voz do Brasil sem lembrar a saga Tupi-Guarani?
Aqui no Norte naufragou o mito do Bom Selvagem no rio das Amazonas…
As ilhas Jurupari são o túmulo da utopia selvagem: o Espírito diabolizado
Pelos padres e novamente amaldiçoado pelos pastores
Vaga entre árvores e esquecimento…


 


 


A Cabanagem é filha da revolta dos Tupinambá: continua nua e crua nas ruas e rios
De 7 de janeiro de 1619 a 7 de janeiro de 1835…
Caminhamos na guerra e na paz até raiar pleno dia da Cidadania:
Último capítulo da anistia malmente esboçada em 1840
Ponto maior do plano Marajó no Pará velho de guerra.


 


 


“O nortista só queria fazer parte da Nação”.