Ao chegar no aeroporto Toussaint L'Ouverture, em Porto Príncipe, o contigente que partiu do Pará para missão da ONU no Haiti, não houve tempo, provavelmente, de lembrar que o herói anti-escravista que dá nome ao aeródromo foi líder da descolonização
Publicado 03/06/2008 19:19 | Editado 13/12/2019 03:29
Em 1804,enquanto escravos haitianos rompiam cadeias e cantavam a liberdade, o Brasil de casa-grande e senzala teria que esperar mais 18 anos para ouvir o grito do Ipiranga, 84 até a Princesa Isabel assinar a Abolição e 85 para proclamar nossa primeira república, ainda envolta em amarras feudais. Desde a revolução haitiana, decorridos dois séculos, ainda se tem notícias de trabalho escravo e a descolonização total e final carece ainda ser acabada de modo justo e perfeito.
De tal sorte, que o Presidente Lula, com aguçado tino político que sua condição de ex-migrante nordestino na selva de pedra de São Paulo lhe deu; durante viagem oficial de cooperação bilateral a Porto Príncipe pôde afirmar, corretamente, que o “segundo tempo” da missão de paz terá que apresentar resultados econômicos e socioambientais antes de ser finalmente concluída. Assim, uma vez mais, podemos dizer que doravante o desenvolvimento sustentável é, sim, o novo nome da descolonização inacabada.
Esta etapa histórica reclama mudança radical das relações Norte-Sul, mas, sobretudo, ausadia sem precedentes da cooperação Sul-Sul. Para tanto, se nos anos de 1970 o meio ambiente começava a agitar a pauta politica mundial, em 1992 ecologia e economia passavam a ser as duas faces da mesma moeda. E, enfim, na virada do século a questão social constituiu o terceiro elemento do tripé do desenvolvimento. Haiti e Brasil são dois grandes capitulos complementares da história mundial da Colonização, na histórica ilha do Caribe a primeira colônia americana onde os escravos se levantaram e tomaram o poder, no continente o gigante adormecido vai, devagar e sempre, despertando e confiando na sua própria força para converter o pais do Futuro em pais do presente.
No “longo século 19” que parece ainda não ter acabado até hoje, os emergentes Estados Unidos ao lado da França jacobina lideraram a revolução republicana e a Europa imperial se digladiou, desesperadamente, para refrear a marcha da História, ela mesma dependente de colônias e escravos. Pois é sabido que não há colônia sem escravo, nem império sem colônia. Naturalmente, o paroxismo da crise colonial abateu-se como furacão na ilha Hispaniola (Haiti e Santo Domingo) onde o sistema começou, ainda com Cristóvão Colombo. O revolucionário André Malraux se tornaria reacionário, não antes de profetizar que o século 21 seria “espiritual”, ou não seria propriamente 21… Eis que já vamos chegando ao fim da primeira década e o “longo Século” industrial continua! Mas, o pior é a superstição de que o colonialismo acabou com a “independência” e a cidadania é apenas a democracia formal. O esfrangalhado Haiti que o diga…
Uma polêmica de cinco séculos
Carece rever a polêmica entre o jurisconsulto Ginés Sepúlveda e o teólogo Bartolomeu de Las Casas, no século 16. A saber: índio tem alma? A desumanização do “índio” americano serviu de álibi perverso para generalização do Negro africano: negro, pois, como se sabe, é um reducionismo animalizador imposto pelo Branco sobre todo e qualquer escravo. O “negro da terra” (índígena escravizado) foi a primeira vítima da colonização do Haiti.
Agora, tal como em vastas regiões amazônicas “civilizadas” não há mais “índios” nas Antilhas… Salvo em São Vicente uns poucos remanescentes do bravo povo Kalina mestiçados, black-indians; e vestígios arqueológicos. Não se vê no Haiti ou na vizinha República Dominicana nenhum dos cinco cacicados Arawaks que existiram antes de Colombo na ilha Hispaniola, aos quais Las Casas chamou de “reinos” de Maguá, Marién, Maguana, Xaragua e Higuey. Embora o índio do mar das Caraíbas tenha sido extinto, todavia a alma antilhana continua sendo Arawak e Caribe, além da melanina e do poder béké da Plantation.
Senhores feudais das Antilhas, perdidos no tempo e no espaço, não fazem espanto a nobres senhores brasileiros que querem acreditar que o Brasil nasceu da natureza virgem, em 1500, com a ingênua carta de Pero Vaz de Caminha ao arrepio da cerâmica marajoara de 1500 anos de idade! E que os “índios” nunca foram donos da Amazônia. Claro que não, nem mesmos as lendárias mulheres guerreiras do “país das amazonas” foram senhoras do El-Dorado coisa nenhuma. Os donos da Amazônia brasileira foram povos aruaques, caribes, tapuias e tupis antepassados do Povo Brasileiro dos quais herdamos o território e a cultura nacional… Cujo uti possidetis ancestral sustenta o Tratado de 1750, que revogou a “linha” de Tordesilhas.
Não fosse o Índio amazônico do século 17, a imperial tese pós-moderna do sr. Al Gore, de “internacionalização” da Amazônia, estaria livre e desempedida para “extinguir” 25 milhões de amazônidas pelos mesmos bons motivos do império luso-brasileiro para decretar o “espaço vazio”, marginalizar seis milhões de “índios” e apagar a babel de mil e uma línguas e culturas diversas. Abre o olho, comendador da ordem do Cruzeiro do Sul!… Por outro nome, o país do Arapari (constelação do Cruzeiro), Brasil nativo das populações tradicionais tapuias, imigrantes das Antilhas pelo arco das Guianas desde antes de Colombo… Quem saberá desta história amazônica dentre a vaidosa intelligentsia tupiniquim?
A destruição das Índias ocidentais e a escravidão do “negro da terra”, há 500 anos; abriu as portas do “comércio triangular” (manufatura européia a troco de escravo africano, açúcar e rum do novo continente). Todavia, antes da colonização Amazônia e Caribe já tinham relação umbilical saída do paleolítico para povoar as ilhas do mar e refluiu para terra-firme dentre guerras antropofágicas superadas pelo genocídio e o saque sistemáticos das nações índigenas em mãos dos europeus. As Antilhas são a fronteira mais antiga da Conquista; enquanto a Amazônia é a última fronteira da Terra.
A descolonização total e final deve acabar, exatamente, onde a colonização começou. Mas, é preciso reconhecer que a emancipação dos povos não é necessariamente aquele tipo de “independência” que se resume a uma declaração formal. Muitas vezes a identidade cultural e a autonomia econômica falam mais alto do que uma bandeira e um hino oficial, tão-só. Se em 1804 o Haiti sacudiu fora seus algozes, com sangue e fúria; este incêndio dos espíritos se propagou ao continente e não ficou sem eco nas massas populares da Europa. Quando da ocupação anglo-portuguesa de Caiena, em 1809, por tropa recrutada no Pará entre o povo, o retorno dos soldados paraenses em 1817 produziu o “contágio” republicano que a termo produziu o movimento de adesão à independência do Brasil, em 14 de Abril de 1823 e diante da incompreensão do império do Rio de Janeiro levou à insurreição popular dita a Cabanagem (1835-1840). No Pará revolucionário o povo chegou ao poder, mas a violência escravista não tendo cessado imediatamente, dentre contradições terríveis, provocou a desersão dos negros que se refugiaram nos mocambos do Trombetas e levou à derrota do movimento revolucionário popular diante da genocida ofensiva do Império brasileiro.
Sobre a vala-comum de 40 mil mortos, a rarefeita e devastada Amazônia, malmente pacificada pela anistia de 1840, teve ainda que arranjar forças para atender aos “Voluntários da Pátria” para ir ao Paraguai levar guerra e genocídio… Em todos momentos a questão colonial e abolição da escravidão estavam presentes. Como se sabe, debaixo de pressão da Inglaterra para expandir o consumo de suas manufaturas produzidas a custo de suor e fome do proletariado, fomos o último país americano a decretar o fim do trabalho escravo. O que, desgraçadamente, ainda existe entre nós contra as leis nacionais, convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e a ética dos direitos humanos universais.
Portanto, conscientes do passado histórico, é uma honra aos militares paraenses participar da reconstrução do país-irmão Haiti, certos de que aprendendo a lição estarão mais qualificados em fazer o dever de casa desde o esperado retorno à pátria. O nosso Brasil democrático fez bem em aceitar a missão de paz na dilacerada república de Toussaint L'Ouverture em solidariedade àquele maltratado povo e resposta ao desafio da comunidade mundial à nossa vocação internacional.
Plano Marshall pós-colonial
Mas, também, para a elite brasileira ver ali quantos Haitis há aqui dentro de nosso país. Na verdade, sociedades como a nossa, nascidas de ex-colônias, além de carecer de conhecimento histórico pré-colonial ainda padecem do ilhamento mental que caracteriza a dependência cultural às antigas metrópoles imperialistas. Isto que faz com que nossa elite provinciana seja instruída na história de Portugal e malmente da história do Brasil brasileiro. Com raras exceções, nossos sábios invejam o progresso dos Estados Unidos, adoram a civilização do Japão e querem imitar a integração da Europa; mas desconhecem redondamente o que se passa com os vizinhos na América do Sul e Caribe.
Com perdoável ufanismo a mídia nacional faz saber que a diplomacia brasileira aspira a uma vaga permanente no Conselho de Segurança da ONU e que para isto já temos apoio decladado de quatro entre os cinco membros com poder de veto (França, Inglaterra, Rússia e China) e que o próximo governo dos Estados Unidos poderá favorecer a reforma necessária nesse sentido. Entretanto, o vestibular do Brasil para assumir patamar mais alto no sistema mundial, evidentemente, está sendo posto à prova no Haiti.
A política externa de um estado democrático não pode ter maior sucesso sem uma opinião pública sintonizada com os grandes temas da diplomacia do País. Portanto, a sustentabilidade politica que favorece a emergência do Brasil entre as novas potências econômicas, reclama solução dos seculares problemas sociais internos e o equilíbrio ecológico com o crescimento industrial e demográfico. Desta maneira, o Haiti é para nós um espelho e um campo de trabalho onde a cooperação pode ocorrer mutuamente. Mas, o Brasil social e intelectual está à altura do desafio? Temos algumas dúvidas.
Belém-PA 03/06/2008