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José Varella – Notícia antropoética: os Marajó da vida

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Atravessado na boca do maior rio do mundo – ovo primordial da biosfera na goela da cobra grande! – existe um arquipélago do tamanho de Portugal, já dizia o Padre Antônio Vieira em carta a El-Rei, na segunda metade do século XVII… Apenas a ilha grande sozinha já excede em tamanho os Paises-Baixos, por exemplo. Esta ilha imensa foi “achada”, entre a Amazônia azul e verde, pelo navegador espanhol Vicente Pinzón, em 1500. Cerca de três meses antes do “descobrimento” do Brasil: conforme o tratado de Tordesilhas (1494) a ilha caía na posse de Espanha (lembrando que a “linha” de divisão, por um meridiano de pólo a pólo a 370 léguas a oeste de Cabo Verde, passaria sobre as futuras cidades de Belém do Pará e Laguna, em Santa Catarina). A gente marajoara sempre quis ligar as ilhas à Terra-Firme (continente), desde as grandes migrações das Antilhas para a costa marítima da Amazônia, em busca do Arapari (país da constelação do Cruzeiro do Sul) enquanto conquistadores brancos, como loucos furiosos, procuravam o El-Dorado e caraíbas selvagens comiam gente em demanda da Terra sem males… Mas, isto não está no Gibi nem na História oficial do Brasil.



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Começou mal a história do desencontrado encontro de nativos e europeus nestas paragens ilhadas. O relato da viagem de Pinzón dá uma pálida idéia da ilha Marinatambalo donde foram extraídos a ferro e fogo os primeiros 36 “negros da terra” da América do Sul. Seria preciso apelar à arcaica filosofia de Vico cada vez mais pós-moderna, para abordar, sob ponto de vista nativo; a triste inauguração das relações internacionais na Amazônia pré-amazônica… Ironia da história: potências que introduziram trabalho escravo na região se tornaram paladinas dos direitos humanos. Mas porém, para os caboclos, tanto faz! Não importa a cor do gato, contanto que ele mate o rato…


 



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Só a poderosa imaginação, segundo a antiga arte dos pajés, poderia talvez romper a dura crosta da historiografia acadêmica carente de interesse a respeito do sentimento desta gente. Que impressão aquelas grandes velas causaram a olhos indígenas assombrados pela indesejável visita? Um dia de chuva, provavelmente. Naus saídas do mar tenebroso como encanto entre as ilhas Caviana e Mexiana adentrando à barra do rio grande… Quem poderá saber, por exemplo, a emoção duma hipotética visita de OVNI num remoto resort, terminando por assalto com armas mortíferas  desconhecidas; o seqüestro de trinta e tantas pessoas levadas para além a fim de fazer escravos, sem mais notícias… Pois assim foi, mais ou menos, que aconteceu o parto desta história de 500 e tontos anos…


 



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O cronista espanhol Oviedo ao comentar o ataque de índios da foz do Amazonas, em 1542, aos dois bergantins de Francisco de Orellana saídos da aventura “das Amazonas”, aventou a possibilidade desta gente, por natureza pacífica no trato com estranhos, estar prevenida contra castelhanos dado o crime cometido pelos homens de Pinzón (noves foras o genocídio caribenho que Castela promovia em nome de Deus e dos Reis Católicos e que chegavam ecos todo dia às Guianas até as ilhas do Marajó)… Por natural grandeza física, biodiversidade e potencial sociocultural poder-se-ia talvez dentro desta ilha grande – dita Marinatambalo, Ilha Grande dos Nheengaíbas, dos Aruans, de Joanes, Marajó, aliás Analau Yohynkaku em língua nativa aruã – fazer mais de uma dezena de cidades-estados semelhantes ao tigre asiático Cingapura, para dar uma idéia disto que resta ao abandono entre chuvas e esquecimento.


 



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Entre a morte de Orellana, em 1544, na louca tentativa de reencontrar a entrada do rio das Amazonas aonde ele ia fundar a Nueva Andaluzia e as primeiras feitorias holandesas nos começos de 1600; as ilhas foram poupadas da sanha colonial. Continuaram mais cem anos entregues simplesmente a seu modo tradicional de viver de mil anos, entre guerras e pazes locais limitadas aos usos e costumes da região. Podemos admitir que apenas forasteiros àquela altura poderiam desejar algo vagamente compreendido como Civilização. Foram os brancos que forjaram a idéia de que a humanidade precisava tirar “índios” e “negros” da “selvageria” em que eles viviam para (quem dera!) usufruir benesses que o Ocidente lhes prometia.


 


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Mercadores holandeses fugindo à míngua da Batávia em luta aberta contra  o império dos Reis Católicos vieram se avizinhar dos índios para os seduzir mediante cobiça de missangas (contas de vidro, tecidos, espelhos, facas, machados de ferro, anzóis, etc.). Bons calvinistas esses comerciantes de escambo propuseram troca de manufaturas por  “drogas do sertão” [cacau, urucu, resinas, tintura vegeral e outros produtos extrativos] e “gados o rio” [peixe-boi, tartaruga, pirarucu e peixes em geral]. Em pouco mais de meio século, que durou o comércio e amizade entre mercadores “hereges” (holandeses, britânicos e franceses prostestantes) e índios do Amapá e Marajó chegaram a aproximadamente 20 navios/ano a exportar carne de peixe-boi em conserva à modo indígena (mixira, cozida e conservada na própria gordura e transportada em tonéis). Como vemos, o insustentável “desenvolvimento” começou logo no primeiro dia de invenção da Amazônia…


 


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Para explicar o retardo sócio-econômico e o porque do escasso desenvolvimento humano desta ilha grande do Brasil gigante, chave territorial da conquista da Amazônia brasileira; o povo insulano que aí habita à margem da história, há muitos séculos; e que, com certeza, faria a fortuna de um singular país neotropical abençoado por Deus e bonito por natureza; com engenho e arte; rindo-se do próprio infortúnio inventou a fabulosa teoria da “caveira de burro” a rebater sem dó a empáfia acadêmica de anêmica inteligência do trópico úmido.


 


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A tal caveira fatídica estaria talvez enterrada em algum lugar destas paragens, tiradas do mato pelas aldeias das Missôes e convertidas por decreto no famigerado Diretório dos Índios (padastro das comunas ribeirinhas de ingrata sorte). Para alguns especulativos, tal caveira não é brincadeira: mas feitiçaria da grossa. A “coisa feia” estaria enterrada debaixo de prefeitura… Outros acreditam que a maldição se esconde debaixo do chão de antiga igreja donde o sortilégio se espalha por contágio às demais ilhas e até ao continente, na terra-firme.


 


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A população das ilhas do golfão marajoara soma algo mais que o número de habitantes do estado do Amapá ao lado. A gente amapaense e das ilhas do Pará juntas com toda Guiana brasileira (Amapá, Marajó, Calha Norte paraense, Calha Norte amazonense e Roraima), noves fora migrantes que vieram se mesclar com os nativos; são como carne e unha no que diz respeito à etnologia e ancestralidade original nascida do homem paleo amazônida de 12 mil anos de idade.


 


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Alguns marajoaras e outros brasileiros ou estrangeiros movidos por este descobrimento neotropical pelejaram para dar notícia da existência desta gente engenhosa remanescente da primeira cultura complexa da Amazônia (ano 500 dC). As primeiras gerações da ilha grande deixaram por testemunho de sua vivência célebres aterros onde edificaram aldeias peculiares e deixaram cerâmicas muito antigas, dentre as quais as mais elaboradas, de, aproximadamente, 1500 anos de tempo arqueológico. Ora, os sábios do Brasil varonil contam o tempo nacional exclusivamente a partir do fidalgo Pedro Álvares Cabral. E, quando carecem de alguma ancestralidade, a vão emprestar de contemporâneos de lusitano Viriato, na outra margem do Atlântico…


 


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Ultimamente, na contramão da história oficial, formou-se no extremo-norte brasileiro o denominado grupo GDM / Unilivre-MAM constituído de militantes da causa de revalorização da gente e da cultura marajoaras. Não precisa dizer que se trata de um exército Brancaleone sob bandeira de Dom Quixote. Estes voluntários fazem questão da inclusão social e cidadania do povo marajoara na República Federativa do Brasil a partir de uma nova história mais bonita, todavia jamais escrita. Cujos começos se acham nas raízes humanas dos primeiros grupos que habitaram as ilhas em busca de cardumes e aí – por necessidade e acaso – inauguraram o que veio a ser chamada a cultura “marajoara”, não exatamente por este povo cujo nome original se perdeu, mas pelo próprio conquistador do “rio das Amazonas”. Que foi, como todo mundo sabe, o Bom Selvagem tupinambá. Guia, arqueiro e remador indispensável do colonizador português.


 


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Militantes do GDM / Unilivre-MAM são signatários da iniciativa de Muaná (2003)  –  lugar de memória da Adesão do Pará à Independência do Brasil de 28 de Maio de 1823 – , que propõe implantar finalmente a área de proteção ambiental do Arquipélago do Marajó – APA Marajó (Art. 13 da Constituição do Estado do Pará de 1989). Advogam que de conformidade com o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) reserva da biosfera é um modelo internacional de conservação compatível com uma APA, exceto pela existência de uma área-núcleo de conservação integral. Que, portanto, a APA-Marajó estadual não conflita com a existência de um mosaico de unidades federais de conservação existente dentro da configuração territorial daquela. Pelo contrário, seria desejável ampla cooperação federativa (governo federal, estados e municípios para na estratégia do ZEE estadual colocar em prática ações visando o reconhecimento da APA como reserva da biosfera. Claro, que estas considerações visam sobretudo demonstrar o interesse da sociedade civil e criticar a inércia dos respectivos serviços governamentais da União, Governo estadual e Municípios. Na missão de esclarecer a comunidade o grupo GDM / Unilivre-MAM informa que a primeira vez que a imprensa  mencionou proposta de criação de reserva da biosfera em Marajó, deu como autor do projeto o deputado federal Antônio Feijão (Amapá). Esta noticia não teve boa acolhida no Pará, sobretudo, pela maneira como ela  se apresentou ao público, o que pode ser verificado ainda em pesquisa de jornais da época.


 


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Na ocasião o GDM não existia, seus fundadores atuavam como grupo marajoara da SOPREN: decano do movimento ambientalista amazônico. O trabalho decorria em parceria com a Pro-Reitoria de Extensão da UFPA na ilha do Marajó; então quase por unanimidade criticou-se a abordagem impositiva para propor a reserva da biosfera a partir da Câmara Federal em vez de promover esclarecimento público junto aos municípios e incentivar iniciativa da sociedade civil. Em Muaná, entretanto, deu-se justamente o contrário e Brasília não passou recibo e o Palácio dos Despachos, em Belém, não tomou conhecimento…


 


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Em 20/12/1994, o grupo marajoara da SOPREN depois de nove encontros de educação ambiental no Marajó, realizados desde 1985, criou o Grupo em Defesa do Marajó (GDM), que agora ao completar 13 anos está sendo formalizado como associação promotora de futura fundação Universidade Livre Marajó-Amazônia (Unilivre-MAM). Entre 28 e 30/04/1995, o GDM em parceria com a UFPA e SECTAM (governo estadual) firmou a carta do Marajó-Açu que inaugurou atividades desse voluntariado.


 


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O GDM faz parte da demanda popular contra a exclusão social e ausência do poder público nas Ilhas do delta amazõnico, assim apoiou ostensivamente o documento dos Bispos da Diocese de Ponta de Pedras e Prelazia do Marajó, em 1999, assinando texto de apresentação do documento eclesial de denúncia do baixo IDH da população ribeirinha. Em diversas manifestações, o GDM fez opção preferencial pela conservação do Museu do Marajó e desenvolvimento da agricultura familiar sustentável da obra social da Diocese de Ponta de Pedras como uma experiência que deve ser reconhecida, amparada, melhorada e reaplicada a todos municípios da mesorregião, inclusive no que diz respeito ao projeto-piloto Praia Grande, realizado em programa de parceria pela UFPA/ POEMA, e a experiência de Jaguarajó pela EMBRAPA, analisados prós e contras.


 


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O GDM tomou parte do Colóquio Dalcídio Jurandir (2001), promovido pela UFPA e UNAMA; desde então, o GDM assumiu sua feição cultural e começou a desenhar com parceiros o projeto Unilivre-MAM www.unilivre.org . Instrumento de consolidação da obra iniciada pela SOPREN no Marajó desde fins dos anos 60, junto ao antigo programa universitário CRUTAC. Justo momento para agradecer ao médico e ambientalista Camilo Martins Viana e prestar homenagem póstuma à professora Ana Rosa Bittencourt, iniciadores do processo de resgate da cultura e do meio ambiente do Marajó. Donde, em seguida, viu-se surgir as cooperativas da Diocese de Ponta de Pedras e o Museu do Marajó, a partir de 1972.


 


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Demonstrando como, poucos voluntários podem tecer a história do movimento marajoara continuado, ao longo do tempo e de gerações, através do coordenador do projeto Unilivre, o GDM tomou parte da fundação do Instituto Dalcídio Jurandir, no Rio de Janeiro; passando a sensibilizar agentes públicos e iniciativa privada na formatação de roteiro para turismo literário com base na restauração da Casa de Dalcídio Jurandir, em Cachoeira do Arari.


 


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Deste modo, através da Paratur, o grupo GDM / Ulinivre recebeu apoio para promover mudança econômica com base no entendimento e a cooperação para o desenvolvimento sustentável. A Paratur, então, visando a estimular estudos de turismo rural com ênfase ecológica e conservação de sítios arqueológicos. contratou especialista em turismo no Mato Grosso. Com parceria do GDM, a Paratur estabeleceu acordo com a AMAM e FAEPA no sentido de estabelecer no Marajó produtos diferenciados com característica das ilhas, principalmente. Então, fazendeiros coordenados pela AMAM e FAEPA puderam receber daquele especialista informações sobre ecoturismo na ecorregião do Pantanal…


 


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Começou, assim, no âmbito técnico do Governo estadual, afin com o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) a idéia política de uma reserva da biosfera capaz de motivar, finalmente, implantação da APA-Marajó (1989) determinada pela Constituição do Estado do Pará. A iniciativa de Muaná 2003 faz parte desta história, onde se insere o GDM com a militância da ong CAMPA e da cooperativa de mulheres CEMEM fundamentais na convergência de esforços que chegam a 2007, na inclusão da proposta da Reserva da Biosfera do Marajó no Plano de Desenvolvimento Territorial Sustentável do Arquipélago do Marajó.


 


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Esta notícia serve, então, de registro do fato da Reserva da Biosfera do Pantanal ter sido espelho para sensibilização do segmento de pecuaristas marajoaras para o diálogo que ainda se precisa intensificar e aprofundar, sem preconceito nem imposição a fim de servir de referência em harmonia com áreas protegidas co-irmãs da rede amazônica de reservas da biosfera. Para que? Para que as comunidades tradicionais possam ser, doravante, reconhecidas e amparadas pela República como verdadeiros esteios da brasilidade a mais profunda no seio mesmo da humanidade inteira.


 


José Varella /// Belém, 07/10/2007