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José Varella: Port of Spain, Abril 2009

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Abril 2009 abriu página nova nas Américas latrinas (abaixo do equador)
Esperança de fugir à senzala e entrar pela porta da sala do andar de cima
Trinidad e Tobago reuniu 34 caciques da Terra Firme e ilhas do Caribe
Sob olhar atônito de Macondo e descrença del pueblo de Santa María de Onetti
A grande ausente Cuba mais presente do que nunca
Estava a ilha rebelde em todos pensamentos e bocas
O presidente mulato (primeiro e único) dos Estados Unidos abriu sorriso
Estendeu a mão a todos dizendo ele aposentar o big stick
Deixar os marines da IV frota em casa
A tomar Coca Cola e ver TV com as crianças de tio Sam.


 


 


Falta combinar com o establishment dono de todos mundos
E fundos
Então o crioulo mais famoso da Venezuela quis ser amigo
Do cacique Obama convidando-o a fumar o cachimbo da paz
Sorte que o país do tabaco (Tobago) não fica longe
E a santíssima trindade latino-americana (Argentina, Brasil e México)
Anda perto de Caracas e Washington ao mesmo tempo
Dando uma no cravo e outra na ferradura.


 


 


Las venas abiertas e a memória do fogo


 


 


O coronel Hugo Chávez amigo do operário Lula e do comunista Fidel
Quer ser amigo também de Barak Obama, fino intelectual negro de Havard
Eleito cacique de um império acidental em decadência
Quem melhor do que douto discípulo do rei Nelson Mandela
Poderia ser o Cara de ocasião pós-globalização?
A cínica diplomacia branca de olhos azuis queria rir
A bom rir da “gafe” do cacique bolivariano
Imaginar que professor de Havard desconheça o hispano Galeano:


 


 


Pura provocação (quem não conhece a creolidad venezuelana
Há de se espantar do rompante bolivariano): havia séculos
A imagem idolatrada de Bolívar fora explorada pela oligarquia
Todavia, carecia, o exército crioulo libertar o Libertador
Dos fantasmas da Grã-Colômbia despedaçada
Como no Brasil varonil o corpo esquartejado de Tiradentes
Seus restos mortais sepultado no ar pela república velha pós-monárquica
O recado de Caracas é antes a Wall Street do que à Casa Branca
Decorada de esperanças e cores
Que nem no palácio Alvorada a dita cuja venceu o medo
De fantasmas de ex-presidentes da saga Inconfidência
Mas o povo dos United States of America carece saber história
D'além fronteiras ao sul do rio Bravo
O libelo Galeano na fiel tradição hispânica de Las Casas
E do payaçu Antônio Vieira na América portuguesa
Com certeza.


 


 


Pensando assim: que melhor lugar que Porto Espanha
Para refrescar a memória euroamericana?
Repetir a proclamação dos  insurgentes bolivianos de 1809
A portada de “As veias abertas da América Latina” espalhada
Em cartazes do Alasca até a Patagônia:
“… Hemos guardado um silêncio bastante parecido à estupidez…”
A maioria silenciosa das Américas deu seu veredito após 500 anos.


 


 


Fala, mea gente! Agora é Lula lá no Planalto e Obama na Casa-Grande
Depois o dilúvio e a mudança climática.


 


 


Montevidéu, 1982


 


 


Galeano no exílio e um mestiço galego que devia ir a Georgetown
Despachado a Montevidéu para poupar a colega negro
Humilhação de servir em casa de brancos de sangue azul
De repente o Uruguai sob as patas do avião: lá a província Cisplatina
Ecos mortos da revolução Farroupilha e dos Sete Povos das Missões.
Minha cara pálida e alma de índio extinto na repressão da Cabanagem.


 


 


No café Madrid descobri que era mais fácil me entender com o dono
A falar galego-português do que portunhol.
Caminhei uma tarde inteira pela calle 18 de Julho
Livraria em livraria como à procura de escritura sagrada
Era “Memoria del fuego” (I), los nacimientos
Agora sim, em Belém do Pará passado tonto tempo, os jornais
E a democracia antigamente cobiçada
Me dão ganas de dizer a Chávez para ser amigo de Obama
Para acabar o curso do descobrimento das Índias Ocidentais
Com a prosapoesia trágica do galego de Montevidéu em punho.


 


 


Disse-me por fim o livreiro àquela tarde en la calle 18 de Julio:
Senhor, aqui Galeano não se vende… Tampouco eu acreditaria que ele se venderia
Fácil ou difícil em qualquer outro lugar.
Tudo que eu queria era comprar um exemplar de “Memoria del fuego”
Já estava eu mui satisfeito por  achar o canto gaúcho de Serafin Garcia
Doutro lado da fronteira:


 


 


“…Sobre’l lomo ‘e potro de mi campo crudo
– que nunca ha sentido de un ‘arao’ la marca –
prontos pa’ meyarles el filo a las rejas
estos altaneros tacuruses se alzan…”


 


 


Acrescentou o livreiro ao fatigado “turista” do acaso em Montevidéu
Que a causa da proibição de Galeano em sua pátria era política
Que mais poderia ser?
Talvez a estupidez do silêncio que a Bolívia reclamou um dia
Na alvorada do século 19
Havia desgosto na face do vendedor numa livraria deserta de leitores
Cansaço no espírito do comprador da tarde vindo do extremo-norte brasileiro
Talvez porque aquele compreendesse na hora um pensamento estranho
Moveu-se não sem antes olhar em volta com temor de espias
Desceu rápido ao porão escuro e ressuscitou da tumba imediatamente
Trouxe à mão um encardido volume de “Vagamundo y otros relatos”
Souvenir do Uruguay sob ditadura e depressão: distinguida metáfora de ocasião.


 


 


O século do vento


 


 


Três anos após estava eu na Ilha do Diabo (Guiana francesa)
Meditando sobre o inferno de Dreyfus
Descobri mentiras de Papillon e outras mais do gênero amazonas
Aí me apareceu um exilado de Pinochet como saído do nada
Morto de saudade de Valparaiso e a me ensinar
Que é preciso sair de nossa aldeia para descobrir o mundo
E saber que o melhor lugar do mundo é a nossa aldeia natal.


 


 


Eu já desconfiava que a melhor parte da viagem é o regresso
Ao país natal (merci Aimé Césaire).


 


 


A grande “ilha” Guiana deu-me régua e compasso:
Aprendi que a Negritude está além da melanina e por este fado
Somos todos “negros da terra” sob o sol e a chuva do El-Dorado.


 


 


O nome Americ, em língua maya e não em latim, batizou a América
Nada a ver com colonizador Amerigo Vespucci
É o “país do vento” desde as montanhas cerca do lago Nicarágua.


 


 


A ilha da Trinidad apenas a onze quilômetros da Venezuela
Uma distância pela metade da lonjura entre Belém do Pará e a ilha do Marajó
Esta dez vezes maior que a antiga Colibri (“Ieni”, beija-flor, em aruaque)
Como se chamava Trinidad antes da civilização acidental cristã
Havia ali sete nações autóctones, as principais sendo aruaques e caribes.


 


 


Era uma vez um certo Anakayuri (senhor da reunião)


 


 


A confederação caribano-aruaco é a metáfora lendária do olvido milenar
Da grande “ilha” das Guianas: coração pulsante do El-Dorado
Assim como Cuba se tornou a grande “ausente” mais presente que todos
Nas confabulações de Porto Espanha
Também o “índio” extinto nas ilhas do Caribe e do mar doce vigia o passado
E alumia o futuro americano.


 


 


Os aruaques nasceram de um buraco no fundo do Rio Negro
Dançando e fazendo guerra descreveram o circum-Caribe
Passaram as cachoeiras pelo rio do Cacique (canal Cassiquiare)
Ganharam as ilhas do Caribe através do golfo de Paria
E a ilha de Trinidad foi a ponte de passagem.


 


 


Atrás deles vieram acesos os Kalina feitos piranha a comer gente:
Mais um erro cometido por Colombo: o canibalismo sagrado
Eucaristia selvagem nunca comida profana para saciar a fome
Senão fome de fama e nome de herói
Por esta guerra sem fim o cacique Anakayuri
Foi caudilho legendários das maiores migrações
Das Antilhas para o continente através da ilha-ponte de Trinidad
Nasceu assim a confederação do Oiapoque
Capital no mont d'Argent vasta extensão da foz do Amazonas
Até o delta do Orenoco.


 


 


Pena que o Presidente Obama com seus grandes afazeres
Para domar a Crise anunciada desde os tempos de Marx
Não haja tempo de ler o profeta Galeano
Saberia mais sobre El siglo del viento: ou a efemeridade do império.