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Larry Rohter: O que Bolsonaro deveria aprender com Marechal Rondon 

Em sua defesa dos povos indígenas, Cândido Rondon idealizou o Serviço de Proteção aos Índios, que começou suas atividades em 1910 e foi dirigido por ele até 1930. Os ideais do sertanista são relevantes até hoje.

Por Larry Rohter*

Marechal Rondon

Em 2015, comecei a escrever uma biografia do marechal Cândido Mariano da Silva Rondon motivado apenas pela admiração que sua vida despertava em mim – exemplar por sua coragem física e moral, seu sacrifício pelo bem comum e seu serviço patriótico abnegado. Nunca imaginei que Rondon: Uma Biografia sairia num momento em que todo o seu legado, todos os valores de não violência, humanismo e tolerância cultural, valores que são manifestações da grandeza da nação e do povo brasileiro, estariam sob ameaça.

Mas aqui estamos. Vale a pena ressaltar a importância do comportamento correto e altruísta de Rondon como funcionário público. Em seu enterro, em 1958, o último de seus discípulos intelectuais, o antropólogo e futuro ministro e senador Darcy Ribeiro, o chamou de “a mais rica, mais coerente, mais enérgica e mais generosa personalidade jamais criada pelo povo brasileiro”. Suas ações e seus ideais são extremamente relevantes para os tempos atuais. O País está mais uma vez enfrentando alguns dos mesmos desafios que preocupavam Rondon, e, de fato, sua experiência nos pode ensinar muito sobre como lidar com a conjuntura em que estamos imersos.

A relevância de Rondon se destaca – mas não se limita – a dois campos fundamentais, cada vez mais em evidência, cada vez mais debatidos, desde que o ex-capitão Jair Bolsonaro assumiu o poder, em janeiro. O primeiro deles é o tratamento dado aos grupos indígenas, que Rondon reconhecia como povos originários do Brasil e que buscou proteger da perda de suas terras e de sua identidade cultural. O segundo é seu pioneirismo em algo que nem tinha nome em sua época, mas que hoje conhecemos como ambientalismo e desenvolvimento sustentável.

Todo brasileiro já ouviu falar de Rondon. Ele foi o desbravador do sertão que cunhou aquela frase memorável: “Morrer se preciso for; matar nunca”. Na realidade, Rondon não foi apenas o mais importante explorador moderno dos trópicos, mas também um grande cientista e, apesar de ser caracterizado como “o general pacifista”, um feroz combatente nas trincheiras políticas. Para defender seus ideais, travou batalhas até com presidentes, como Epitácio Pessoa, Artur Bernardes e Getulio Vargas, sem medo das consequências pessoais.

De certa maneira, as recentes declarações do presidente Bolsonaro sobre a necessidade de abrir novos terrenos para o agronegócio e a mineração lembram o discurso de Vargas, que, uma vez declarado o Estado Novo, em 1937, anunciou uma “marcha para o oeste” com o intuito de fomentar o desenvolvimento econômico do Centro-Oeste. Para Vargas, a campanha representava “o verdadeiro sentido de brasilidade” e pretendia fazer com que os indígenas se tornassem “úteis ao país”. Qual foi a resposta de Rondon? Redobrou seus esforços para demarcar terras indígenas, usando novos critérios que ampliaram o tamanho das áreas delimitadas.

Durante todo o Estado Novo, Rondon foi servidor de um governo cujos objetivos e filosofia ele não compartilhava. Mas achou melhor permanecer dentro desse governo, lutando para seus próprios projetos, a ficar fora, sem poder fazer nada. Foi desse jeito que ele conseguiu torpedear um acordo com o Vaticano que daria ao clero um papel na política indigenista, ajudou a bloquear uma aliança do Brasil com as potências fascistas e conseguiu um orçamento mais gordo para defender os interesses dos indígenas.

Mas em matéria de política indigenista talvez ainda mais relevante para o momento atual seja a crise de 1910, da qual Rondon foi um dos principais expoentes. Naquele momento, a economia estava em franca expansão, com o empresariado paulista ansioso por penetrar o interior e explorar suas riquezas. O diretor do Museu Paulista, Hermann von Ihering, deu sustento intelectual a esse desejo quando escreveu um artigo afirmando que “os índios não representam um elemento de trabalho e progresso” e, portanto, “parece que não há outro meio de que se possa lançar mão senão seu extermínio”.

Em meu livro, afirmo que Rondon, com sua vigorosa defesa dos povos indígenas e de suas terras, evitou um genocídio. Com isso, não quero dizer que o governo Bolsonaro esteja contemplando um genocídio. Longe disso, embora num disparate há 20 anos o então deputado tenha levantado tal suspeita quando lamentou: “Pena que a cavalaria brasileira não tenha sido tão eficiente quanto a americana, que exterminou os índios”. Mesmo sendo mais comedidas, suas declarações mais recentes deixam claro que ele, como os adversários de Rondon um século atrás, considera que os povos indígenas são um empecilho, um obstáculo ao desenvolvimento pleno do país.

Como tal, é necessário tirar os “privilégios” dos quais eles supostamente desfrutam. “Não tem terra indígena onde não tenha minerais,” declarou o futuro presidente em 2015, numa palestra em Campo Grande, perto da terra natal de Rondon. “Ouro, estanho e magnésio estão nessas terras, especialmente na Amazônia, a área mais rica do mundo. Não entro nessa balela de defender terra para índio.” No mesmo discurso, queixou-se de que “os índios não falam nossa língua, não têm dinheiro, não têm cultura. São povos nativos. Como eles conseguem ter 13% do território nacional?”.

Em seus momentos de maior angústia, Rondon se desesperava com esse tipo de raciocínio, muito comum em sua época – e com a negligência e a hostilidade provocadas por ele. “Desrespeitados em suas pessoas e suas famílias, perseguidos, caluniados, eles vivem em situação misérrima”, confidenciou a seu diário em 1930, quando terminava uma missão de inspeção das fronteiras do Brasil e encontrou comunidades indígenas indigentes. “Se aceitam a sociedade do branco, ficam reduzidos à pior das escravidões… Se se embrenham nas matas, são acossados e exterminados a ferro e a fogo.”

Quem faz um mínimo de esforço rapidamente vai descobrir que um dos feitos mais notáveis de Rondon foi justamente documentar as ricas culturas dos “povos nativos” do Brasil. Fez isso não apenas com uma centena de artigos científicos, mas também por meio do primeiro filme etnográfico de que se tem notícia e das primeiras gravações de música indígena, aproveitadas posteriormente pelo compositor Heitor Villa-Lobos.

O poliglota Rondon aprendeu línguas indígenas como bororo, pareci e nambiquara e compilou glossários e livros de gramática desses idiomas. Foi o conjunto desse trabalho científico que possibilitou a obra-prima do antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, Tristes Trópicos.

É importante lembrar também que Rondon foi o idealizador de uma agência governamental para atuar em prol dos interesses dos indígenas. Em 1910, ele fundou o Serviço de Proteção aos Índios (SPI), antecessor da atual Fundação Nacional do Índio (Funai), e foi chefe do organismo até a Revolução de 1930, quando foi expulso do Exército por não apoiar Vargas.

É verdade que tanto o SPI como a Funai tiveram altos e baixos, com líderes capazes ou não, ao longo das décadas. Mas até a chegada de Bolsonaro ao cenário nacional ninguém questionava a responsabilidade do governo brasileiro de cuidar dos interesses de todos os seus cidadãos, mesmo aqueles que vivem à distância do Estado. “Se eleito, vou dar uma foiçada na Funai, mas uma foiçada no pescoço”, declarou Bolsonaro em agosto de 2018, em plena campanha presidencial. “Não tem outro caminho. Não serve mais.”

Talvez seja mais uma bravata. O desaparecimento da Funai ou seu estrangulamento com uma falta de verbas representaria o desmantelamento da herança sertanista de Rondon e a rejeição dos valores rondonianos. Estabelecer um organismo oficial para proteger os índios, suas terras e suas culturas foi uma das grandes contribuições de Rondon ao humanismo brasileiro. O marechal sempre favoreceu um sistema em que cada povo indígena teria o direito de escolher o grau de aproximação que desejava com a sociedade brasileira. Bolsonaro, não.

O presidente quer a incorporação obrigatória ou até forçada. Durante a campanha, declarou: “Vamos integrá-los à sociedade. Como o Exército faz um trabalho maravilhoso tocante a isso, incorporando índios, está certo, as Forças Armadas”. Acho surpreendente essa atitude. Afinal de contas, o presidente é um ex-militar, e o Exército venera a memória de Rondon.

Para Rondon, sempre foi impossível separar a causa indígena da questão do meio ambiente. Os povos originários reverenciam o mundo a seu redor, e ele, como filho das etnias bororo, terena e guaná, compartilhava essa visão do homem vivendo em harmonia com a natureza. Os indígenas eram, portanto, guardiões naturais da beleza e das riquezas da terra.

Como explorador e cientista, Rondon aprendeu a respeitar ainda mais a grandeza do mundo natural e foi o primeiro a visitar lugares que hoje formam parte do sistema de parques nacionais – entre eles o Monte Roraima e as Montanhas do Tumucumaque. Também foi autor do projeto que originou o Parque Nacional do Xingu, criado três anos depois de seu falecimento, para homenageá-lo. Por essa dupla razão – ambientalismo e indigenismo –, é especialmente preocupante ver o governo Bolsonaro lançar a ideia, mesmo de forma provisória, de abrir reservas indígenas à mineração.

Nos tempos de Rondon, os seringais constituíam a principal ameaça à existência dos povos originários. Mas ele lutou também contra as investidas dos garimpeiros, madeireiros e fazendeiros – até em momentos em que a postura do governo foi de indiferença. Agora o país tem um governo que apoia, de maneira entusiasmada, uma política que resultaria na destruição de terras indígenas demarcadas por Rondon e na negação da autonomia dos habitantes dessas reservas. Essa proposta é a crônica de uma tragédia anunciada.

Em 2005, os cintas-largas me convidaram para visitá-los na Reserva Indígena Roosevelt, que se estende por ambos os lados do Rio Roosevelt, no limite dos estados de Rondônia e Mato Grosso. Ali, me contaram como a Expedição Científica Roosevelt-Rondon havia passado por aquele lugar em 1914 e como, percebendo as intenções pacíficas de Rondon, que deixou presentes para eles à beira do rio, os caciques decidiram não atacar os forâneos.

Mas com garimpeiros invasores a história foi outra. Em abril de 2004, depois de quatro anos de invasões e uma resposta oficial que os cintas-largas julgavam deficiente, os índios mataram pelo menos 29 garimpeiros envolvidos na extração ilegal de diamantes. Ora, se isso aconteceu quando tucanos e petistas estavam no poder, supostamente alinhados com os povos indígenas e o movimento ambientalista, como seria a reação de um governo abertamente hostil aos interesses desses dois grupos?

É fácil prever. A administração Bolsonaro não vai reagir às denúncias e queixas dos indígenas, os povos invadidos vão buscar justiça a seu modo e o governo somente entrará em ação depois de outro massacre – contra os detentores legais da terra invadida. Aliás, no plenário do Congresso, o então deputado Bolsonaro afirmou, em 2016, que, caso fosse eleito, daria “fuzil e armas a todos os fazendeiros”.

Para dizer a verdade, em cada cantinho da política nacional atual que eu olho, percebo ecos dos tempos de Rondon. Tomemos como outro exemplo o bate-boca que acabou com a exoneração de Ricardo Galvão, presidente do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), no dia 2 de agosto. Quando dados oficiais do Inpe para o mês de junho revelaram um aumento considerável no desmatamento na Amazônia, Bolsonaro reagiu iradamente, questionando os dados e acusando o Inpe de fazer “propaganda negativa” contra seu governo e de agir “a serviço de alguma ONG”.

Galvão rebateu a acusação, citando o renome internacional do Inpe por sua “transparência e honestidade científica”. Rondon viveu uma experiência semelhante em 1922, quando o presidente Epitácio Pessoa pediu que ele encabeçasse uma comissão governamental para investigar as causas da feroz seca que assolava o Nordeste havia cinco anos. O governo queria recomendações para aliviar a crise. Paraibano de nascimento, Pessoa deu destaque ao combate à seca, construindo mais de 400 açudes e poços durante seu mandato – mas sem conseguir os resultados desejados.

Como engenheiro militar, Rondon achava inicialmente que o problema fosse puramente técnico, fácil de resolver com melhores barragens e sistemas de drenagem. Depois de viajar pela região por dois meses, conversando com autoridades, lavradores, agrônomos, empresários e até, num encontro memorável no sertão do Ceará, com o Padre Cícero, Rondon chegou a outra conclusão. “Não pode o problema de forma alguma reduzir-se à obra de irrigação e açudagem”, escreveu no relatório que entregou ao presidente. “O que se visa acima de tudo é ao homem, a sua incorporação a uma vida com dignidade.”

Ao ler as entrelinhas, é possível dizer que Rondon estava afirmando que o problema fundamental era um sistema político e econômico que concentrava o poder e a riqueza em poucas mãos, tirando do pequeno agricultor a possibilidade de uma vida digna. Pessoa, porém, acabou rejeitando o relatório que ele mesmo havia encomendado. Numa refutação escrita e em comentários à imprensa, qualificou a avaliação de Rondon de excessivamente sombria. Quando os repórteres foram procurar Rondon, sua resposta foi taxativa: “A consciência manda que eu diga o que sinto porque, no futuro, quando a realidade confirmar os fatos previstos pela ciência, não quero ser do número dos otimistas de hoje”.

Talvez as palavras de Rondon sejam de consolo para Galvão, o ex-presidente do Inpe, e outros cientistas preocupados com o viés do atual governo. Passado quase um século do caso de Rondon e Pessoa, sabemos quem tem razão: aquele que confiou nos “fatos previstos pela ciência”. E acho que não precisamos desperdiçar nem cinco minutos duvidando da idoneidade do Inpe e dos cientistas que, seguindo Rondon, atuam como “a consciência manda”.

Continuam muito pertinentes também os conselhos que Rondon ofereceu a seus colegas militares na última entrevista que concedeu, em maio de 1957, na ocasião de seu 92º aniversário. Estava fisicamente fraco, doente e quase cego, mas suas palavras foram lúcidas e até proféticas. Um ano e meio antes, havia surgido nas Forças Armadas um movimento para impedir a posse do recém-eleito presidente Juscelino Kubitschek – movimento que foi frustrado por um golpe preventivo liderado por outro grupo militar.

Rondon era aliado de JK e de seu plano para construir uma nova capital no Cerrado do Centro-Oeste e quis, a todo custo, evitar novas manifestações de descontentamento e desagrado entre os oficiais. Foi por isso que disse: “O Exército deveria ser o grande mudo, pronto ao sacrifício pelo bem da nação, sem, contudo, intervir em mesquinhas questões de politicagem”. Todos nós sabemos que sete anos depois as palavras de Rondon foram ignoradas pelos colegas e que o resultado foi uma ditadura militar que durou 21 anos e fez o país sofrer muito.

Hoje, após uma luta árdua para reconquistar o respeito e o apoio do povo brasileiro, as Forças Armadas, mais uma vez, enfrentam uma encruzilhada. Até que ponto devem atrelar os destinos das instituições militares a um presidente ex-militar que quer se aproveitar de seu prestígio? Ou seria melhor manter uma certa distância das palavras e ações levianas e precipitadas do atual ocupante do Palácio do Planalto? São perguntas que ainda não têm respostas. Mas os conselhos sábios de Rondon sugerem um caminho a seguir.

* Larry Rohter é jornalista e escritor. Autor de Rondon – Uma Biografia (Objetiva), foi correspondente no Brasil do jornal The New York Times