Mário de Andrade: Comunismo

O escritor modernista Mário de Andrade (1893-1945) manifestava um “interesse (desconfiado porém simpático) pelo comunismo”, conforme as palavras de Leandro Konder. Em 30 de novembro de 1930, Mário publica no Diário Nacional, de São Paulo, artigo com o título “Comunismo”, que denuncia a propaganda contra a Revolução Russa e a experiência soviética. “Comunismo pra brasileiro é uma espécie de assombração medonha”, ridiculariza o escritor. “É um artigo muito atual de Mário de Andrade, embora publicado há 90 anos”, diz o jornalista José Carlos Ruy, colaborador do Prosa, Poesia e Arte. “Basta substituir a palavra ‘Rússia’ por ‘China’, ‘Cuba’ ou ‘Venezuela’.” Confira o texto.

Comunismo

Por Mário de Andrade

Está se dando no Brasil um movimento em torno da palavra Comunismo que é dum ridículo perfeitamente idiota. Antes de mais nada, se me referi à “palavra” Comunismo, é porque, já falei outro dia, ninguém sabe o que ela é. Às vezes a gente fica até sarapantado vendo indivíduos que parecem cultos, acobertarem com essa palavra as noções mais ínfimas. É vergonhoso mas incontestável que pra uma grande maioria de indivíduos até bem alfabetizados, Comunismo chega a ser isso da gente se aproximar dum indivíduo e ir falando: – Me dê sua gravata que pretendo ficar com ela.

Comunismo pra brasileiro é uma espécie de assombração medonha. Brasileiro nem bem escuta a palavra, nem quer saber o que é, fica danado. Bom, é verdade que danação de brasileiro tem cana-de-açúcar pra adoçar, baunilha pra perfumar e no fim um sorvo de caninha de alambique de barro, bem boa pra rebater: acaba tudo em dança. Mas nem por isso deixa de ser dum ridículo cansativo esse apavorante pânico que tomou o Brasil por ordem da Inglaterra.

Não pensem agora que amolado com esse ridículo a que nos estamos sujeitando, por ordem da Inglaterra, vou definir e explicar neste artiguete o que seja Comunismo. Não posso e não é possível, não só porque a coisa é complexa por si mesma como porque essa mesma complexidade permite que na prática o Comunismo possa se apresentar numa infinidade de realizações diferentes. A gente poderá atingir uma noção vaga e apenas. Da mesma forma que a respeito da palavra “república”. Ninguém mais terá a coragem de dizer que República signifique de fato administração pelo povo da coisa do povo. Isso seria aliás muito mais o conceito de Comunismo que de República. Essa tem sido ou tem pretendido ser a aplicação, pelo menos regional, do Comunismo na Rússia. As palavras “comunismo” e “república” são das tais ingenuidades, comuns à inteligência humana, pelas quais nós sossegamos a perplexidade inenarrável da nossa precariedade de conhecimento, batizando as coisas ignoradas que intuímos vagamente, com uma palavra. A vagueza, a ignorância não mudaram nada em nós, porém a palavra salvou-nos tudo: criou-se um Demônio novo, e a gente se bota a exorcizá-lo ou propiciá-lo, conforme se ele representa um Princípio Bom ou um Princípio Ruim.

No fundo e popularmente, o que nós somos, somos eternamente uns homens da caverna. Primários e apavorados.

A República é uma noção vaguíssima. Na prática tem havido centenas de aplicações diferentes dessa noção; e assim como teve aplicações aristocratíssimas dela, impérios há, como o inglês, em que na prática se goza de muitíssimas prerrogativas republicanas. E o mesmo há de se dar com o Comunismo, que terá certamente centenas de manifestações diferentes. Jean Richard Bloch chegou a demonstrar que muitas ilações de princípio comunista estavam em prática no próprio antro infamíssimo do capitalismo, os Estados Unidos. Mais que na Rússia.

E agora a Rússia entra em cena. O que nos leva ao pavor que temos pelo Comunismo é a identificação deste com a Rússia, por ser esta a primeira e a única nação que o aplicou verbalmente até agora. Antes de mais nada, a verdade verdadeira é que ninguém não sabe direito o que é a Rússia contemporânea nem o que está sucedendo por lá. Uma circunstância fatal do regime político internacional em que estamos vivendo. Os países capitalistas têm feito tudo não só pra ocultar da humanidade a Rússia verdadeira, como inda têm feito tudo pra prejudicá-la até internamente. Por seu lado a Rússia havia de reagir, está claro. Se defende. Os outros lhe exageram as mazelas. Ela sequestra as mazelas que tem. E essas manipulações da verdade provêm duma confusão pueril dos conceitos de governo e de felicidade. Um sistema de governo jamais dará felicidades pra ninguém não. A felicidade é uma aquisição puramente individual. Um governo poderá quando muito organizar um relativo bem-estar exterior e só isso a gente pode exigir dele. Ora se a Rússia geme de muitos malestares (e isso depende em parte enorme da situação internacional em que a colocaram os outros países) também é incontestável que esses malestares não são piores que os da Alemanha, que os da Índia, que os do Brasil uochintoniano. E goza de muitos bem-estares também.

Mas Deus me livre de negar os horrores que a Rússia sofreu e sofre na implantação do regime novo. A bobagem é a gente identificar esses horrores, que foram especificamente europeus, psicologicamente russos, com o Comunismo. São horrores russos, não são horrores comunistas. Da mesma forma que o afogamento de Nantes foi um horror francês e não um horror republicano. E São Bartolomeu, e a Inquisição ibérica, e a implantação do Protestantismo na Inglaterra. De tudo isso há que culpar os homens e não as ideias.

Está claro que, como foi dito desde o início destas colaborações, o Diário Nacional não esposa em absoluto as opiniões dos seus colaboradores literários e eu estou fazendo literatura. Falei sobre Comunismo porque me arde ver o susto brasileiro ante esse monstro de palco, inventado pela malvadeza de uns e a ignorância de outros.

E aliás basta a gente imaginar no que é a psicologia brasileira pra ficar certo que jamais não teríamos aqui a ferocia bolchevista. Esta Revolução gloriosa, já se falou, foi uma revolução alegre. Tipos absolutamente criminosos do regime passado estão aí passeando na rua. Os outros, e alguns até difíceis da gente criminar nas suas pessoas, como Antônio Prado Júnior e Mangabeira, estão navegando as ondas do verde mar. Estou imaginando um Comunismo implantado aqui… Depois de serem queimadas de novo todas as casas de Bicho, os “Soviets” brasileiros, como no delicioso poema de Murilo Mendes, mandavam mil contos de presente pros órfãos turcos. Depois davam um grande baile.

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