Dez poetas brasileiros apresentam suas percepções sobre a situação política vivida no Brasil em versos contundentes, numa seleção organizada por Claudio Daniel, colaborador do Prosa, Poesia e Arte. Os poemas fazem parte do caderno Poesia em Tempos de Barbárie e surgiram da experiência do Laboratório de Criação Poética – um curso teórico e prático ministrado à distância pelo próprio Claudio Daniel, via internet (Skype).
Publicado 13/04/2019 22:06 | Editado 13/12/2019 03:29
No Laboratório, são discutidos conceitos teóricos sobre a natureza da poesia, o processo criativo, os gêneros poéticos, entre outras questões, além da discussão dos textos escritos pelos alunos. Quem desejar saber mais sobre o curso pode escrever para o e-mail claudio.dan@gmail.com e solicitar informações sobre dias e horários das aulas.
(Brasil. Eleições presidenciais 2018)
* Marcia Friggi nasceu em Mata (RS) e atualmente reside em Indaial (SC). É especialista em Linguística, graduada em Letras pela Unicruz (RS) e professora de Língua Portuguesa e Literatura da rede estadual de Santa Catarina. Participou das antologias Senhoras Obscenas e Mulherio das Letras. Em 2019, lançará seu primeiro livro de poesia, Lâmina.
Um soldado negro
que não se ache tanto
sabe do sangue negro
o interpenetrando?
Sabem os transeuntes
da saga dessa família?
E dos soldados autômatos,
com sua mitologia?
Sabem, os que observam,
da dor por sob a pele?
Ou do valor de mercado
de cada um que se vende?
E da roleta-russa
armada em cada esquina?
É risco igual para todos?
Ou as balas vêm de cima?
O que fazer, agora,
com esse corpo em dano,
que, embora sem vida,
grita seu abandono?
Como apagar o pavor
dos olhos de uma criança,
se o metal é veloz,
mas fere em câmara lenta?
Para além dos estatutos,
impõem-se leis de pedra.
São oitenta disparos
e uma família negra.
* Edelson Nagues é mato-grossense, radicado em Brasília (DF). Estudou Direito e Filosofia, com pós-graduação em Língua Portuguesa. Com vários textos premiados, é autor do livro de contos Humanos, além de duas obras de poesia, Águas de Clausura (10º Prêmio Literário Asabeça) e Palavras para Estrangular Silêncios (Patuá, 2019). É coautor do CD Anand Rao Musica Poemas de Edelson Nagues e organizador da antologia Respeitável Público: Histórias de Circo e Outras Tragédias.
* Caio Graco Maia é natural de Salvador (BA). É pesquisador em filosofia (Walter Benjamin e crítica literária) no programa de mestrado na Universidade Federal de Sergipe, estado onde vive atualmente.
* Marcia Tigani, natural de São Paulo (SP), é médica, especialista em Psiquiatria e divide-se entre a carreira que escolheu por vocação e a poesia. Publicou os livros Caminhante: Prosas e Rimas ao Vento e Navegações e Pragens. Atualmente, divide-se entre seu trabalho em consultório em São José dos Campos e a participação no Laboratório de Criação Poética.
* Scheila Sodré é poeta, professora de Língua Inglesa, graduada em Tradução e autora da plaquete de poemas Hemicrânia (Leonella, 2018).
agora ali, nos campos do cerrado,
não correm mais riachos transparentes,
nem olhos d’água, tudo foi arado
de soja e sorgo, viçam as sementes;
não correm mais riachos transparentes,
nem lambaris pequenos, mas ladinos,
de sorgo e soja, viçam as sementes;
por conta da ganância, desatinos;
nem lambaris pequenos, mas ladinos,
porque foram as matas derrubadas,
por conta da ganância, desatinos,
secaram os riachos, as aguadas;
porque foram as matas derrubadas,
não mais se existem bichos pequeninos,
secaram os riachos, as aguadas
onde pescavam homens e meninos;
não mais se existem bichos pequeninos,
nem peixes não existem mais nos rios
onde pescavam homens e meninos,
(os leitos estão secos, tão sombrios);
nem peixes não existem mais nos rios
– piquiras, lambaris ou matrinxãs –
os leitos estão secos, tão sombrios,
nas beiras não se têm panapanãs;
piquiras, lambaris ou matrinxãs,
não buscam, rio acima, seus berçários,
nas beiras não se têm panapanãs
nem cantam juritis, japus, canários;
não buscam, rio acima, seus berçários,
os peixes que passavam reluzentes,
nem cantam juritis, japus, canários.
que, outrora, ali viviam tão contentes;
os peixes que passavam reluzentes,
nos rios desses povos milenares,
que, outrora, ali viviam tão contentes,
no seu sagrado chão, antigos lares;
nos rios desses povos milenares,
(quem olha não entende ou mesmo crê)
no seu sagrado chão, antigos lares,
um mar de soja é tudo o que se vê!
* Fabíola Lacerda nasceu no sertão pernambucano em 1975 e vive em Recife, onde trabalha como servidora pública. Participou do Laboratório de Criação Poética e publicou poemas em revistas eletrônicas. Esta é a sua primeira publicação impressa.
Ao longe, gritos da cidade,
brados dos desalmados
estrangulam a noite.
O silêncio dos famintos
a querer pão e trabalho
desafinam a trilha do dia.
A feira está às moscas,
as mãos, vazias
A fábrica, lacrada e sombria
Surda é a voz do mercado
E crônica a fome, a sede, o medo.
* Ewaldo Schleder Filho nasceu em Curitiba, estudou Direito, Jornalismo e Publicidade. Quase a totalidade de seus escritos encontra-se em jornais e revistas – nacionais e algumas internacionais. Integrou a coletânea Dez Poetas do Sul e co-editou o livro Mercosul no Divã. Foi premiado pela Fundação Cultural de Curitiba, curadoria de Décio Pignatari, com o clipoema Ezra Pound.
Entrega mulheres,
homens e meninos.
A nudez de um lado,
os cabelos do outro.
O pátio gira, gira
toca o infinito.
A palha aninha os corpos.
Insensíveis ao choque,
seguem as horas dos sinos.
– Colônia de Barbacena: não sabemos nada sobre isso.
No trem das Gerais,
o jogo do infortúnio.
Entrega ferro, nióbio,
tantalita e manganês.
Lavra a cava,
infiltra o desalmamento.
Choca-da-mata, águia-cinzenta
batem asas ao silêncio.
O peixe salta
no último redemoinho.
Mais dia menos dia, lá vai o Rio.
– Mariana, Brumadinho: não sabemos nada sobre isso.
O Insuportável contém as portas do esquecimento.
* Katia Marchese nasceu em Santos (SP), em 1962. Consta nas antologias Movimento Poetrix (Scorteci, 2004), Senhoras Obscenas (Benfazeja, 2017), Tanto Mar sem Céu – Laboratório de Criação Poética (Lumme, 2017), Casa do Desejo – A Literatura que Desejamos (Patuá-Flip 2018) e nas revistas Germina, Musa Rara e Zunái. Mora em Campinas e é gestora pública. Página no Facebook: www.facebook.com/tetedekatia.
Treinam olhos,
bocas
e tímpanos.
Escorrem ódio
e combustível.
Onde estão as falas evoluídas?
Ouço palavras novas com velhos sons.
Mais aterrorizantes,
impossível.
Tudo grita ao redor.
A verdade, desconstruída:
fatos, fraudes, fakes.
A ferida democrática,
ainda viva.
Hoje vamos matar alguém.
O rompido das palavras contra
absorve a vil simetria.
Não cairão os versos.
Não soltaremos as mãos.
* Maria Marta Nardi nasceu em Marília (SP) e reside atualmente em Campo Grande (MS). Formada em Letras pela PUCC/Unimar, é professora de Língua Portuguesa. Participou da plaquete Tanto Mar sem Céu, organizada por Claudio Daniel (Lumme Editor, 2017), colaborou em blogues e sites de literatura. Em 2019, publicou a sua primeira plaquete individual, Sobre o Caule de Água, pela editora Leonella.