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Railídia, artista da escrita e do canto

“Sou fogo, sou raio, pedreira, trovão” – os versos de Mourão que não cai (Douglas Germano) soam como uma confissão.
Por José Carlos Ruy

Railídia - Clécio Almeida

Confissão feita por Railídia Carvalho, no recém lançado Cangalha. Cantora de voz cristalina e alegre ela é a verdadeira artista da palavra. Escrita, no jornalismo e na poesia; e cantada, agora no CD Cangalha. Pronto desde dezembro de 2016, comercializado a partir do início de 2017 e, agora, lançado em Belém do Pará, terra de origem desta cantora que coloca a arte, voz e o texto, a serviço da luta do povo e contra todo preconceito e opressão.

É difícil saber qual Railídia se sobressai – a cantora, que traz os sons e meneios do Brasil no canto e no palco, ou a jornalista que dá voz aos que lutam pela liberdade e pelo socialismo. Com quem tenho a sorte de compartilhar o trabalho neste portal Vermelho.

Railídia é uma mulher comum – e este é o seu melhor elogio. Uma mulher comum que escreve e canta. Uma mulher como tantas brasileiras, que enfrentam o batente (mesmo fazendo parte do grupo Inimigos do Batente…), lava roupa, cozinha, cuida da filha adolescente… e canta!

É uma mulher comum que tem, na história pessoal, e na memória, o passado da música brasileira. Lembro-me de, numa ocasião, falar a ela de uma música que ouvi faz tempo, mas só lembrava um pedaço de verso, que dizia mais ou menos assim: essa cor amarela de teu rosto eu trago na sola dos pés. Falei, e eIa saiu imediatamente cantando “Você me chamou de preto pedante / Para desfazer da cor / Não sabes que eu tenho orgulho / Do que você tem horror”. Era o samba Preto Pedante, de Moacir Paulo, gravado por Gordurinha na década de 1950. Que puxou pela memória a partir do pedaço de verso que lembrei!

É um conhecimento verdadeiramente enciclopédico da música brasileira. Conhecimento histórico que resulta de anos de pesquisa e de sua memória privilegiada. Conhecimento também dos ritmos e sons espalhados por todos os cantos deste Brasil enorme – sons que mistura, no palco e no disco; sons de seu Pará natal, ouvidos desde menina em Almeirim, na beira do rio Amazonas, na Belém onde estudou e se formou em jornalismo; sons também que ouviu nas rodas de samba em São Paulo, onde vive há duas décadas e se tornou esta cantora notável; sons da Bahia, do Rio de Janeiro, de toda esta terra, de onde haja uma roda de samba reunindo gente em volta de um violão e um tambor, um copo de cerveja e um terreiro para dançar. Coquetel de sons de todo o Brasil que está registrado no cd Cangalha.

O canto de Railídia reproduz uma habilidade que, pode-se dizer, vem também do jornalismo – é a crônica do dia a dia das alegrias e das lutas do povo, dos pobres pretos mestiços índios caboclos que somos todos nós. “Minha vontade é dividir esses sons com as pessoas e fazer circular por aí falando para o povo do jeito do nosso grupo sentir e perceber a música”, disse numa entrevista a Mariana Serafini, no Portal Vermelho.

Como canta na faixa “Louca” (Aldir Blanc e Maurício Tapajos), cujos versos traduzem o prá lá de contemporâneo compromisso de luta e indignação: “Onde quer que impere a maldade, loucura pouca é bobagem”, ou “Odeio essa bondade que se omite”.

Mas não se pode esquecer a alegria e o sonho de “Sandália de Prata” (Bebeto di São João e David Correa): “Risquei o céu de poesia, descansei na sombra do arvoredo, do morro eu trouxe a filosofia, fiz os versos do meu samba enredo”. Reafirmando a maneira do povo sentir e exprimir sua visão do mundo, que é dita pelas palavras, pelas mãos no tambor ou violão, pelos pés que rodopiam pelo terreiro. Na filosofia que vem do morro e das periferias.

Belém do Pará tem a sorte de ouvir, na sexta-feira (15), Railídia Carvalho, no Teatro Waldemar Henrique, logo à noitinha. Num espetáculo que traz a cantora de volta à sua terra para cantar e mostrar suas conquistas da voz, do pensamento da escrita. Belém, que inveja!

Ouça a canção A Louca: