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Rodrigo Casarin: Não “cancelem” Monteiro Lobato e Pedro Bandeira 

Na semana passada, escrevi sobre Narizinho – A Menina Mais Querida do Brasil, adaptação de Pedro Bandeira para a história de Narizinho, uma das personagens mais famosas de Monteiro Lobato (o livro é ilustrado por Renato Alarcão e publicado pela Moderna). Apontei que, no trabalho, o criador d’Os Karas trocou palavras e expressões utilizadas por Lobato, suprimiu trechos racistas e deu um pé na bunda de Pedrinho da história.

Por Rodrigo Casarin

Monteiro Lobato e Pedro Bandeira

Nos comentários da matéria, algumas boas discussões e certa estridência de quem considera um sacrilégio o que Bandeira fez com a obra lobatiana. Temos pontos interessantes para debater, mas, antes de qualquer coisa, clamo: pessoas, acalmem-se. Desta vez não há motivo para gritaria.

Também considero a exclusão de Pedrinho da narrativa uma intromissão bastante drástica, ainda que justificada por Bandeira: “É o mais fraco de todos os personagens da saga. Não pensa nada, não imagina nada, nada resolve”. Em todo caso, a obra de Lobato já está em domínio público e não há problema algum em outros artistas trabalharem em cima dela da maneira que acharem melhor.

É razoável que algumas pessoas prefiram tratar Narizinho – A Menina Mais Querida do Brasil como uma recriação, mas, pela forma como a história se desenvolve e pela linguagem permanecer bastante próxima ao texto original, seguirei chamando de adaptação. Como a base para o trabalho de Bandeira é Reinações de Narizinho, o personagem descartado é apenas um coadjuvante; se ele tirasse de Pedrinho o protagonismo das histórias de Caçadas de Pedrinho, aí o papo seria outro.

Sobre a supressão dos trechos racistas, nada mais previsível e bem-vindo. Sou contra alterar o texto original de Lobato, como chegou a ser sugerido outrora. No entanto, numa adaptação escrita em 2019, o absurdo seria manter expressões como “negra de estimação”. Lobato era racista? Era – foi entusiasta da eugenia, inclusive. Isso é um traço do pensamento dominante em sua época? Sim.

Lidemos com isso: o cara é um dos maiores escritores de nossa história, criou um estupendo universo fantástico e foi decisivo na formação de muitas crianças, mas também abraçou ideias deploráveis. Foi genial, foi racista, foi complexo, foi contraditório. Bandeira também é um homem de seu tempo e não seria razoável que, hoje, um escritor sustentasse deliberadamente preconceitos e discriminações, principalmente num trabalho voltado para crianças.

Até outro dia a lacração estava na moda. Agora, a palavra da vez na internet é “cancelar” – apagar, ignorar, desprezar, abandonar… Gente querendo cancelar Lobato existe há tempos. Também apareceu gente querendo cancelar Bandeira. Repito: vamos com calma, povo.

O texto original de Lobato – com suas virtudes, mazelas e personagens eventualmente enfadonhos – continua à disposição de todos. Qualquer um pode pegar Reinações de Narizinho e se encantar com a história e/ou retirar dela elementos que ilustrem o racismo no Brasil da primeira metade do século 20. E, quem preferir, agora pode conhecer aquele universo repaginado por Bandeira, numa adaptação que trará um tanto dos dois autores.

O que Lobato fez não será apagado ou esquecido só porque Bandeira resolveu mexer em parte de suas histórias. E Bandeira, claro, tem total liberdade para propor novos caminhos para Narizinho, Pedrinho e companhia – estamos cansados de ver adaptações de clássicos por aí, não é? As discussões são bem-vindas, necessárias (principalmente sobre como esses livros são ou podem ser utilizados pedagogicamente), mas não esqueçamos de encarar as questões de maneira complexa – e sem gritaria.