“Realmente não tenho tolerância pra uma série de coisas que vejo acontecendo”
Publicado 23/07/2020 23:46 | Editado 24/07/2020 12:20
“A classe média só me dá aborrecimento, me faz comprar televisão, me faz consumir supermercado, me faz ter apartamento, me proíbe de respirar. Da classe média eu quero distância. Tanto assim que no meu filme a classe média é caricaturada como um cordão de bobocas que andam pelo filme o tempo todo fazendo poses como faz a classe média.”
“O meu trabalho não vai pras pessoas que deveriam ver porque os veículos de comunicação não permitem. Primeiro porque existe um bloqueio feito pela ignorância cultural brasileira. E existe deliberadamente um bloqueio da máquina de consumo contra meus filmes, porque minha imagem não agrada muito aos homens que comandam os veículos de comunicação. Eu sou realmente uma pessoa bastante difícil de lidar, realmente não tenho tolerância pra uma série de coisas que vejo acontecendo nas repartições públicas e nos escritórios e nas diretorias dos veículos. Cerceamento de pensamento, e outras milongas mais. Logo, não tenho grandes possibilidades de aceitação.”
– Cantor, compositor e cineasta Sérgio Ricardo em entrevista ao fascículo Nova História da Música Popular Brasileira, 1978, que acompanha um disco de 10 polegadas, com oito faixas, letras comentadas e fichas técnicas.
Àquela data, Sérgio Ricardo tinha lançado onze discos, dirigido quatro filmes, o curta “Menino da calça branca”, os longas “Esse mundo é meu”, “Juliana do amor perdido” e “A noite do espantalho” (a que se refere no primeiro comentário), e marcadamente em seu currículo a mítica, icônica e bela trilha sonora de “Deus e diabo na terra do sol”, além de outros filmes de Glauber Rocha, “Terra em transe” e “Dragão da maldade contra o santo guerreiro”
O célebre episódio no II Festival de Música Popular, no auditório da TV Record, São Paulo, em 1967, é recorrente ao se falar de Sergio Ricardo, quando ao apresentar sua canção “Beto bom de bola” foi violentamente vaiado sem conseguir conclui-la. O cantor voltou ao final e os gritos foram mais intensos. Sérgio Ricardo bradou “Vocês venceram! Isto é Brasil! Isto é país subdesenvolvido!”. Quebrou o violão, jogou para a plateia, saiu e foi desclassificado.
Os dois trechos da entrevista, ao que apressadamente possam analisar como traço de ressentimento, é a mais lúcida e sincera reflexão daqueles que fazem parte de uma constelação de “intransigentes sonhadores”, como bem definiu meu caro amigo compositor Ricardo Augusto.
Ziraldo, na mesma publicação, no texto de abertura assim arremata o perfil de Sérgio Ricardo:
“Sérgio não estourou em termos de massa. Certamente jamais irá estourar. Não que sua música seja elaborada demais, sofisticada ou impenetrável; o mistério é outro. Sua honestidade consigo mesmo chega a exageros que o definem como um dos seres humanos mais puros e de melhor caráter que eu já conheci em minha vida. Seu pavor à mentira, à mistificação, ao engano e à hipocrisia criaram em sua volta uma certa impenetrabilidade que é a sua forma de se defender do mundo.”
De 1978 para cá, quando em 2018 dirigiu o filme “Bandeira de retalhos” e ano passado lançou o livro de poesia “Canção calada”, Sérgio Ricardo íntegro, não se entregou. Moldou sua trajetória como Beto Bom de Bola, o personagem de sua canção vaiada, “deu o seu recado enquanto durou a sua história”. E sua história ficará sob aplausos.