Graciliano Ramos, um dos maiores escritores da língua portuguesa, completaria 127 anos neste domingo (27). Penso que a hora é boa de retomar o que publiquei no Vermelho há sete anos.
Por Urariano Mota*
Publicado 26/10/2019 10:15 | Editado 13/12/2019 03:29
O Velho Graça, a ótima biografia de um dos nossos clássicos, teve reedição da Boitempo em 2012. Se os adjetivos não estivessem tão gastos, diria que foi um lançamento oportuno e necessário. Mas em atenção a Graciliano Ramos, procurarei evitar o excesso de qualificações. E vamos ao trabalho.
Da velha edição que tenho comigo, de 1992, é que retiro os trechos e reflexões que reúno agora. A primeira delas é que deveria haver no momento uma suspensão das notícias que são um alarido de baixa animalidade, que fazem passar as horas em um vazio sem fim, como as fotos da nudez da última celebridade ou o arremedo de justiça dos astros do judiciário, porque neste 27 de outubro é aniversário de Graciliano Ramos. Diria Camões: “Cesse tudo o que a musa antiga canta”. Mas, em relação ao noticiário, que musa? Melhor, esse “que musa?” soaria aos ouvidos dos repórteres como um “que música?”. E para evitar a musa que se confunde com música, vamos ao primeiro trecho que destaco da biografia O Velho Graça, escrita por Dênis de Moraes:
Em artigo no Diário de Pernambuco, de 10 de março de 1935, sob o título "O romance do Nordeste", (Graciliano Ramos) escreveu:
‘Era indispensável que os nossos romances não fossem escritos no Rio, por pessoas bem-intencionadas, sem dúvida, mas que nos desconheciam inteiramente. Hoje desapareceram os processos de pura criação literária. Em todos os livros do Nordeste, nota-se que os autores tiveram o cuidado de tornar a narrativa, não absolutamente verdadeira, mas verossímil. Ninguém se afasta do ambiente, ninguém confia demasiado na imaginação. (…) Esses escritores são políticos, são revolucionários, mas não deram a ideias nomes de pessoas: os seus personagens mexem-se, pensam como nós, sentem como nós, preparam as suas safras de açúcar, bebem cachaça, matam gente e vão para a cadeia, passam fome nos quartos sujos duma hospedaria.’”
Notem o quanto é impressionante como escritores tão distintos, José Lins, Graciliano Ramos, Jorge Amado, sem comunicação entre si, em estados e cidades diferentes, tenham escrito romances como se estivessem em um só movimento literário. Isso, que para os professores de cursinhos vestibulares, e até em certas cátedras universitárias, ganha feições de prato feito, é mais que coincidência.
Esses homens inquietos não escreviam o que escreveram por método ou influência de escola estética. O que os unifica é o espírito do tempo, que no caso eram as ideias de esquerda, a influência socialista, o movimento comunista no Brasil, que refletia o eco de 1917, até mesmo em Palmeira dos Índios, onde Graciliano vivia.
E neste ponto, de passagem, cabe uma brevíssima ponderação, que deixo para estudiosos mais capazes: pensa-se que a influência do Partido Comunista se deu em suas estritas fileiras, ou, de outro modo, nos tenentes e movimentos de massa e de operários. Nada mais inexato. A partir de 1930, a força das ideias socialistas se alastrou no Brasil entre comunistas organizados, comunistas de simpatia (mas simpatia é quase amor, diz um bloco do carnaval do Rio), socialistas, e, de modo geral, em artistas que refletiam o povo brasileiro como se manifestassem uma nova independência.
De certo modo, de certo modo, não, de todos os modos, o pensamento que avançou entre nós, da ciência à literatura, recebeu a fecundação do diálogo com o mundo da esquerda. De passagem ainda, mas em outro lugar, deveria ser observada a influência desses escritores nordestinos sobre a literatura dos africanos que se libertaram de Portugal.
Mas no momento, chamo a atenção para o que me parece um engano, que por força do hábito se tornou um gênero de texto. Penso em Vidas Secas, livro sobre o qual a pesquisa de Dênis de Moraes informa:
O processo de composição do romance – o único que escreveu na terceira pessoa – seria, por razões de ordem financeira, dos mais originais da literatura brasileira. A conta da pensão e as despesas duplicadas com a vinda da família para o Rio o obrigariam a escrever os capítulos como se fossem contos. Era um artifício para ganhar dinheiro, publicando-os isoladamente em jornais e revistas, à medida que os produzia. Às vezes, republicaria o mesmo conto, com título alterado, em outros periódicos. Dos 13 capítulos, oito sairiam nas páginas de O Cruzeiro, O Jornal, Diário de Notícias, Folha de Minas e Lanterna Verde, além de La Prensa, de Buenos Aires…
Um romance desmontável, cujas peças podem ser destacadas para a leitura e seriadas de mais de uma maneira. Como telas de uma exposição que têm vida própria, independente dos demais”.
Mas Vidas Secas não é um romance! E as razões para isso vêm não só de ordem financeira, quero crer. Um romance exige – ainda que a sua realização seja rebelde a linhas de fronteira – algo mais que a repetição de personagens em diferentes relatos. Se assim fosse, A Comédia Humana, de Balzac, seria um só livro. No romance, há uma organicidade de pessoas, digo, personagens, que crescem e se diluem em um destino em bloco. E de tal modo que as suas partes autônomas, ainda que seccionadas e vendidas como contos, ganham pleno sentido no conjunto. O todo é a iluminação do particular.
O magnífico relato da cachorra Baleia, unido a páginas magistrais pelos personagens que o talento de Graciliano acrescentou, jamais teria unidade absoluta se pertencesse a um romance. Na verdade, Vidas Secas é uma vitória do gênio do escritor sobre as condições difíceis de tempo e lugar em que escreveu o livro, e o seu valor não cai nem um bilionésimo, quando se nota nele um exemplar conjunto de contos em vez de um romance. E aqui, sobre a genialidade do artista, em mais de uma página de sua biografia recebemos lições:
“Muito Bom!!!!” é o comentário mais ponderado que me ocorre. Para o escritor que é de ofício autodidata, isso custa anos, porque não está na gramática, nem em livro algum, fala o mestre provado. Me acompanhem por favor: em que oficinas de literatura podem se formar escritores essenciais? Em que oficina de escritor se forma a vida? Em que oficinas, a seu modo laboratórios de bebês de proveta, se conseguirá a clareza que só a malhação fora das academias de todo tipo e gênero dá? Em que local se aprenderá a observação que o instinto e a mente e a experiência concebem?
Em Graciliano Ramos, se o compreendemos bem, há uma teoria da arte, há uma teoria da literatura, há uma lição de sabedoria que deveria ser luz para todo escritor digno do nome. Todos, novos e velhos, escritores livres ou escravos ladinos. Como neste passo, do diário de Paulo Mercadante, citado em O Velho Graça:
Entendam. O entusiasmo ponderado acima não significa que da sua escrita venha uma norma, uma lei que diga a um homem que deseje “apenas” (!) expressar o seu pensamento: “olha, fora deste caminho nenhuma salvação é possível”. Não é isso. Na literatura só existe uma regra: não existe regra. Só existe uma maneira: de todas as maneiras. O reconhecimento da grandeza de Graciliano Ramos não implica a busca do caminho único da escrita escorreita, limpa e enxuta do mestre. Pois como ficaria a gordura de José Lins? Em que plano assomaria o bolero em forma de letras de Gabriel García Márquez? Ou os torneios vocabulares de Proust? E os delírios de matar de Gogol? Não.
Trata-se apenas de retirar da experiência curtida, no sentido de pele enrugada de muitos sóis, de Graciliano aquilo que serve a gordos e magros, altos baixos, desbocados ou contidos. A saber: escrever é um lento aprendizado, que se estende pela vida, é um trabalho imenso que exige concentração e paciência. Muita paciência mesmo.
E aqui, sem sair do capítulo da excelência da sua escrita, e como nem tudo são flores, entramos em um terreno mais pedregoso. Entramos no embate político do mestre, dentro do partido e fora ao mesmo tempo, até como uma prova de que a vida partidária não é uma estufa. A sociedade e a história passam pelos partidos comunistas, onde quer que estejam. Refiro-me ao cume da obra de Graciliano Ramos, o Memórias do Cárcere.
Para mim, a literatura política no Brasil tem um pico, cujo nome é Memórias do Cárcere. Até hoje, nada li melhor como retratos de homens comunistas no coletivo de um presídio. É curioso como até nas universidades não veem as Memórias como o melhor livro de Graciliano. Dizem: “Não é ficção” – e com isso desprezam para a lata de lixo uma prosa madura, grande, de denúncia, porque “não é ficção”. Mas ela é tão boa ou melhor que a sua melhor ficção.
Da primeira edição que tenho, da Livraria José Olympio em 1953, com fac-símiles do manuscrito e retrato do autor no desenho de Portinari, digitei com paciência há treze anos, para publicação no espanhol La Insignia, a página imortal que narra a deportação de Olga Prestes. Está aqui.
Pois bem, essa obra não se fez sem conflitos os mais sérios, mais particularmente com Diógenes de Arruda Câmara, o homem que seguia com rigor, digamos, excessivo a disciplina partidária. Diz a biografia:
– Admiro Jorge Amado, nada tenho contra ele, mas o que sei fazer é o que está nos meus livros.”
Conta o livro que em outra oportunidade, anos antes desse dia, Diógenes, em uma reunião com escritores – entre os quais estavam Astrojildo Pereira, Dalcídio Jurandir, Osvaldo Peralva e o próprio Graciliano –, teria feito, segundo o biógrafo Dênis de Moraes, “uma apologia à literatura revolucionária, exigindo que os presentes se enquadrassem nos ditames zdanovistas. A certa altura, citaria como exemplo os poemas de Castro Alves, que a seu ver encaravam os problemas sociais numa perspectiva revolucionária. E o que era mais importante: com versos rimados”.
E mais, em outro ponto da biografia:
– Nenhum livro do realismo socialista lhe agradou? – perguntaria o jornalista.
– Até o último que li, nenhum. Eu acho aquele negócio de tal ordem que não aceitei ler mais nada.
– Qual a principal objeção que o senhor faz?
– Esse troço não é literatura. A gente vai lendo aos trancos e barrancos as coisas que vêm da União Soviética, muito bem. De repente, o narrador diz: ‘O camarada Stálin…’ Ora porra! Isto no meio de um romance?! Tomei horror.
– Não seria possível purificar o estilo do realismo socialista?
– Não tem sentido. A literatura é revolucionária em essência, e não pelo estilo do panfleto.
Não é de se admirar, portanto, que não tolerasse as fórmulas emanadas de Moscou. Ao tomar conhecimento do informe de Zdanov sobre literatura e arte, esculhambaria:
– Informe? Eu gosto muito da palavra, porque informe é mesmo uma coisa informe.”
A relação de Graciliano Ramos com o PCB, nos últimos anos, é conflituosa, aqui e ali em aberta crise. Mas se destaca nessa relação, por isso mesmo, uma expressão de grandeza do escritor, que não saiu da sua escolha pelo comunismo, mesmo em luta contra a estreiteza da direção na época. Nessa biografia emerge um comunista à velha maneira, à maneira que julgamos clássica, modelar. Olhem só como agia, e no que agia ele era, o comunista Graciliano Ramos:
– Não me sento à mesa com patrão. Todo patrão é filho da puta! O Paulo é o que menos conheço, mas é patrão.
No dia seguinte, Bittencourt se queixaria:
– Mas, Graciliano, como é que você me faz uma coisa dessas?
– Paulo, eu o respeito, mas você é patrão …
– Mas eu sou um patrão diferente.
– Não, Paulo. Todo patrão para mim é …,
–… filho da puta. Já sei que você xingou minha mãe.
O comunista e o burguês acabariam rindo juntos.
Paulo Bittencourt gostava de provocar Graciliano por suas ideias socialistas. Quando o Correio da Manhã recebeu novas máquinas, Paulo o alfinetaria:
– Imagine se vocês fizessem uma revolução e vencessem. Todo esse parque gráfico seria destruído.
Graciliano o cortaria:
– Só um burro ou um louco poderia pensar isto. Se fizéssemos a revolução e vencêssemos, só ia acontecer uma coisa. Em vez de você andar por aí, viajando pela Europa, gastando dinheiro com mulheres, teria que ficar sentadinho no seu canto trabalhando como todos nós”.
Esse livro, O Velho Graça, tem uma característica até hoje pouco destacada. Em vez da pura leitura de uma biografia, desperta no leitor uma simpatia profunda pelo biografado. Nele, Graciliano Ramos cresce como escritor em uma rara empatia, como um irmão mais que amigo, ou como um amigo mais que irmão. Enfim, como um camarada, fraterno, admirável. Um mestre e companheiro de jornada.
* Urariano Mota, jornalista, é autor dos romances Soledad no Recife, O Filho Renegado de Deus e A Mais Longa Duração da Juventude. É colunista do Vermelho e colaborador do Prosa, Poesia e Arte.