Ser de esquerda: a postura ante a soberania, a unidade e o planejamento

Como diz meu intelectual preferido, Ignácio Rangel, o verdadeiro teste de progressismo em nosso país faz-se pela adesão ou não às idéias que envolvem a defesa da unidade nacional, de nossa soberania e da utilização do método do planejamento (1). Partin

O problema da unidade


 



A questão ganha ares concretos na medida em que habitamos um país, cujo povo fala a mesma língua e (o povo) foi formado sob os fluxos e influxos de uma única cultura e religião. Tal unidade e seu sentido variam, mas persiste a vontade de permanecermos unidos, mesmo as expensas das contradições inerentes a este processo.


 


O problema da unidade anda em pauta. Tomando em mente a fábula de La Fontaine, podemos perceber que a brusca aproximação econômica entre várias regiões – historicamente – pode-se converter na associação da panela de barro com a panela de ferro. Em rasas palavras, o lento processo de diminuição (em termos econômicos) das diferenças regionais poderá converter cadeias produtivas inteiras em unidades marginais e assim as determinações externas (imperialismo) poderão prevalecer.


 


Meus queridos amigos Aldo Rebelo e A. Sérgio Barroso poderão – de forma acertada – indagar se o processo (brilhante) de substituição de importações – e seu caráter industrializante – não deu termo – dado seu caráter nacional – a este problema de unidade econômica nacional. Concordarei plenamente. Porém, não é conveniente esquecer o efeito apostático (2) do neoliberalismo no Brasil. Mais, a predominância de interesses externos (financeirização) teve na carga tributária sua grande expressão. Tal carga tributária, além de onerar a produção, colocou em xeque nosso pacto federativo dando margem ao fenômeno da guerra fiscal.


 


Por outro lado, a correlação de forças no plano mundial acelerou o processo de internalização de soluções importadas, que na ponta do processo, por efeito da integração abrupta ao mercado mundial, converteu nossas cadeias produtivas em unidades marginais indefesas. Internamente, este problema foi fortalecido com a preferência de implantação (ao longo do século passado) nas regiões mais desenvolvidas de indústrias do Departamento I.


 


São desafios (teóricos e práticos) a serem enfrentados pela nossa esquerda. Logo, é no mínimo temerário, para não dizer irresponsável, apregoar a necessidade de unificar o mercado mundial quando ainda enfrentamos potenciais problemas internos de unidade.


 


A nação como categoria historicamente concebida


 



Toda esta discussão proposta poderia transformar-se em mero exercício de diletantismo se não a tratarmos em termos estratégicos, ou seja, a visualização da transição ao socialismo. Assim, o materialismo como algo diagnosticado de forma histórica exige um rigor intelectual. Enfim, um exercício de trabalho em torno de conceitos.


 


Desta forma, em primeiro lugar, situemos como categoria histórica o conceito de nação. Ou seja, nas palavras de Rangel: “(…) a nação é uma estrutura que nasce e morre, depois de cumprida sua missão. Não tenho duvida que todos os povos da terra caminham para uma comunidade única, um ‘povo só’. Isto virá por si mesmo, à medida que os problemas que não comportem solução dentro dos marcos nacionais se tornem predominantes e sejam resolvidos os graves problemas suscetíveis de solução dentro dos marcos nacionais se tornem predominantes(…)”.


 


Continuando, para Rangel: “(…) O “mundo só” não pode ser um conglomerado de povos ricos e povos miseráveis, cultos e ignorantes, hígidos e doentes, fortes e fracos”.


 


Na linha de raciocínio acima exposta, podemos diagnosticar que a formação humana é um constante processo de transição que inicia-se no homem bárbaro, cuja rusticidade é conseqüência das inóspitas condições de vida dada a inexistência de técnicas que permitiam o domínio do homem sob a natureza até o chamado homem universal, como concretização do ser humano sob o comunismo.


 


Partindo das premissas expostas podemos vislumbrar dois diagnósticos, historicamente comprovados: 1) o desenvolvimento da técnica impõe uma divisão social do trabalho (Adam Smith) que estreitam os limites nacionais, porém tal processo não exclui a necessidade de preservação da soberania nacional e 2) o desenvolvimento tecnológico tornará imperativo o desaparecimento das fronteiras nacionais, porém não como conseqüência de nossa vontade particular.


 


Não podemos esquecer que ainda em nossos dias é corriqueira as manifestações racistas e colonialistas, o que demonstra o caráter lento do processo de transformação humana no rumo do Homem Universal.


 


Nação, técnica e interdependência internacional


 



Tendo em mente a historicidade da categoria de nação, é importante percebermos que em nossos tempos, o nascimento de uma nação é expressa por sintomas diferentes das nações surgidas em tempos mais remotos.


 


De forma histórica as nações foram constituídas como forma de fortalecer a unidade ante a dispersão. De forma mais clara, o fortalecimento das barreiras externas e a proscrição das barreiras internas foram medidas que denunciavam o surgimento de uma comunidade nacional.


 


Porém, dado o progresso tecnológico ser efeito da ampliação da divisão social do trabalho, é mister perceber que esse processo de avanço da técnica é fator de limitação à soberania nacional. Limitação cuja raiz está na crescente interdependência entre as nações.


 


O desenvolvimento histórico deste processo aponta à necessidade de lançamento a outro instrumento, cuja eficácia fazeria (e faz) sentir-se na preservação da própria humanidade.


 


O planejamento como ciência e arte


 



As contradições inerentes a este processo fizeram-se sentir na decadência do instituto nação na medida em que as rivalidades interimperialistas do início do século passado explodiram sob formas de guerras mundiais. O planejamento como forma de programar o esforço de guerra passou a ser utilizado em ampla escala civil. Enfim, da mesma forma que se percebeu sua serventia às guerras, criou-se consciência de sua importância ao estabelecimento de formas de superação de transtornos da vida social.


 


Ciência e arte entrelaçam-se neste instrumental. O planejamento pode ser concebido como a mais importante de todas as artes e de todas as ciências de nosso tempo. Somente este instrumental foi capaz de sistematizar o enorme – e histórico – acúmulo teórico e científico produzidos pelo homem. É a condição objetiva que habilita o homem a programar seu próprio destino. É a condição objetiva à superação da “pré-história da humanidade”.


 


O planejamento como pressuposto à unidade e a soberania


 



A inegável que o surgimento de novas nações nos últimos 50 anos é marcada pela exigência universal do direito ao desenvolvimento. E é inegável que o desenvolvimento sem planejamento só pode ser caracterizado como acidente histórico. Não preciso citar os exemplos das nações africanas libertas pós-2º Guerra Mundial, a China, a Índia e Israel. Todos exemplos tem algo em comum: a promulgação de planos ao mesmo tempo dos primeiros atos constitutivos como nações.


 


Encerrando: para o caso Brasil atual nem precisamos justificar a necessidade da retomada de um planejamento com vistas não somente ao nosso desenvolvimento. Mas principalmente à preservação de nossa soberania e unidade nacional.


 


Ser de esquerda acaba tornando-se uma expressão da atitude individual ante os desafios que envolvem a preservação de nossa unidade nacional, da ampliação da soberania e da correta utilização do instrumental do planejamento.


 


 


EM TEMPO: Neste momento encontro-me, a trabalho, na República Popular da China. As novidades e detalhes desta visita em breve serão – por mim – socializadas aos leitores do nosso Portal.


 



Notas:



(1) RANGEL, I.: “Recursos Ociosos e Política Econômica”. In, Obras Reunidas de Ignácio Rangel. Editora Contraponto, Vol. 1, p. 457, Rio de Janeiro, 2005. Todas as elaborações trabalhadas no presente artigo é fruto do texto citado, o que dispensa demais citações. Na introdução a este ensaio, em particular opinião, encontra-se a melhor conceituação de nação elaborada por um intelectual do campo marxista. Tal introdução é uma adaptação de palestra intitulada “Recursos Ociosos na Economia Nacional” publicada pelo ISEB em 1960.


 


(2) O termo citado vem de “apostasia” em alusão ao imperador romano Julianus II “O Apóstata”. Julianus II Embora batizado e educado no cristianismo, não tardou a mostrar predileção pela cultura pagã. Desta forma “apóstata” é uma forma de designar pessoas ou movimentos que buscam a volta ao passado. Ignácio Rangel classificou como uma apostasia (entendida como contra-revolução) tanto a eleição de Collor no Brasil, quanto o papel cumprido por Gorbatchev e Yeltsin na URSS.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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