A Cabana Pousada – Capítulo 4

O galpão dos pescadores estava repleto. Nunca antes na história da Vila tantos moradores participaram assim de uma reunião comunitária. Até os mais céticos dessas coisas de auto-organização popular para determinado fim de melhoria ou mudança lá estavam para tratar do assunto momentoso: a cabana, pousada, primeiro na areia, depois no rochedo, agora…

Tio Bugue presidia a assembléia. Desde que chegara à vila e resolvera as primeiras contendas entre vizinhos, tornara-se o condutor das reuniões, e aquele a quem todos recorriam para esclarecimentos, mediações e conselhos.

Marina sentava-se ao fundo do barracão. Como todos, estava ansiosa – mas, como poucos, incomodada. Desde o advento da cabana, era presa da sensação de que todos os olhos a perscrutavam, como se soubessem aquilo que nem ela sabia.

Na noite em que chegara da sede do município, voltou a sonhar com a casa misteriosa. Viu-se numa campina, cercada de mato alto até a cintura. Numa elevação, a cabana, ali depositada qual obra de mão divina, incomensurável. Do fundo de seu silêncio, chamava, e, por meio dele, dizia-lhe tudo naquela língua falta de signos.

Marina recusava aproximar-se. Limitava-se a dispensar um ódio maciço às paredes da cabana. Era uma ira concentrada, um despeito, pelo fato de a casa descobrir-lhe o segredo, de alcançar o que nem ela mesma suspeitava.

Ao despertar na madrugada de seu quarto, Marina sentia-se opressa. O sonho a acompanhou inteiro até o filtro e não se dissipou com a água que bebeu. Nem mesmo uma visita ao banheiro apagou-lhe sequer trechos. Todo o sonho, toda a cabana, todas as sensações vigiam na alvorada que lá vinha longe ainda.

Marina passou na varanda o resto do sono perdido, balançando-se ao rangido da cadeira. De onde estava, via a cabana, na ponta do promontório, sua sombra recortada contra o céu enluarado e salpicado de estrelas. A sombra nada lhe dizia.

Talvez dormisse, sugeriu-lhe um pensamento, que, ato contínuo, a vez rir.

Súbito, a casa sumiu. Foi o tempo de Marina apoiar-se nos braços da cadeira para se levantar. Assim que endireitou a espinha e voltou a olhar o promontório, a cabana não estava mais onde esteve. No lugar, apenas viu os vultos dos vigias, que se levantavam e, quais formigas alvorotadas por graveto, iam de um lado para outro, atarantados.

O novo sumiço da cabana abriu os trabalhos da reunião. A balbúrdia era grande. Dois murros na mesa foram necessários para concentrar a atenção da audiência. Tio Bugue falava:

– Se a gente não se acalmar, isso não acaba bem. Vamos primeiro ouvir o pessoal que ficou vigiando a casa. Depois, a gente abre pra quem quiser opinar. Fala, Alfonso.

Postou-se ao lado da mesa um moço esgalgo, só de calção jeans, peito magro nu. A pele acobreada de pescador ornava com o ocre que dominava o galpão. Montara guarda com mais dois rapazes, também pescadores; como ele, solteiros (Tio Bugue, receoso de perigos imprevistos, escolheu-os para o turno da madrugada por serem solteiros).

– Não tem muito o que contar. – começou Alfonso – A gente tava lá de guarda, conversando.

Periquito aqui armou uma fogueira, a gente meteu umas batata no meio das brasa. Ninguém pensou em dormir, fazer turno, essas coisa. Zualdo levou uma pinga e um cinzano pro rabo de galo. A gente ia varar a noite comendo batata assada e bebendo, pra esquentar. Tava ali conversando; de vez em quando olhava pra casota, contava uma piada, história de trancoso, essas coisas. Quando tava contando de uma prenda que vi lá na sede, cadê cabana?! Me dei conta quando o ‘Quito aqui levantou de repente e começou a procurar não sei o que, mexendo a cabeça de um lado pro outro…

– Eu tava prestando atenção na conversa do Fonsim – aparteou Periquito. Quando levanto os olhos pra cabana, não vi nada no lugar.

– ‘Quito parecia que tinha uma mola – desta vez, era Zualdo que tomava a palavra. Levantou assim e começou a procurar, cara assustada. A gente começou a andar, até a correr, pra cima e pra baixo. Cheguei ir na ponta das pedra e olhar pra baixo. Vai que a coisa despencou. Nada. Nem sombra.

– E o diacho é que a dita não apareceu em outro lugar aqui na ilha – comentou um morador.

A balbúrdia deu sinais de querer recomeçar. Tio Bugue logo reassumiu o comando:

– Sem zoada, minha gente… sem zoada. Bóra ver: alguém quer dar o seu recado? Viu alguma coisa de diferente? A moça Marina ali no fundo, quer falar?

Marina, depois de alguma hesitação, havia erguido o braço. Testemunhara também o desaparecimento da cabana. Não havia como se furtar.

Aproximou-se a custo – tinha gente em cada polegada quadrada do barracão. Mão esquerda roçando o tampo da mesa, gastou alguns segundos olhando aquele povo todo. O que digo? O que conto? Até onde conto?

– Olá. Me chamo Marina, cheguei tem dias. Moro no que antes foi casa de meu tio… Bom, isso vocês sabem. Ontem… essa madrugada, melhor dizendo… é… perdi o sono e fui pra minha varanda. De lá, dá… quer dizer, dava pra ver a cabana. Sentei na cadeira de balanço e fiquei olhando… E… Bom, quando fiz esse movimento para me levantar e fiquei de pé, olhei, e a cabana, que um segundo antes tava lá, já não tava mais… E… Bom, é isso. Obrigada.

Enquanto o silêncio fazia-se mais silêncio na platéia, e Marina, agora com uma pequena vereda aberta entre os corpos, voltava com menos dificuldade ao seu lugar, Tio Bugue, reflexivo, olhos postos na recém-chegada, parecia intuir. Marina, assim que se virou, deu com os olhos do bugueiro. Sustentou-os um tanto vexada por uns breves segundos. Dali a nada, retirou-se.

Tio reclinou o semblante, mirada posta nas mãos. Passados instantes, deu com a atenção de todos posta em si. O silêncio persistia, tenso. Teriam intuído, como ele?, chegou a quase cogitar.
Levantou-se:

– A cabana se foi. Assim como chegou. Sem cabana, não temos o que tratar. Não acho que pague a pena ficar aqui discutindo como veio e como foi. Agora, é ver o que acontece. Se ela reaparecer, a gente volta a conversar. Até lá, se o até lá chegar, é ficar atento. Se alguém perceber qualquer coisa, corre contar.

A reunião se dispersa em murmúrios quase inaudíveis. Tio Bugue resta sozinho no galpão. Com ele, uma suspeita, coisinha de nada, começa a tomar corpo.

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