Mostra reduz revolucionário Che Guevara e frisa o ''ícone''

Desde sua morte na selva boliviana, em 1967, Ernesto Guevara de la Serna, o Che, ganha força como ícone da rebeldia jovem, da vontade de lutar contra a opressão. Ainda assim, um ícone — porque, dessa forma, pouco se fala da causa pela

Seu foco é a célebre foto tirada pelo cubano Alberto Korda, em 1960, no momento em que em que Che participava do funeral de mais de cem cubanos mortos na explosão de um barco belga no porto de Havana. Korda — cujo nome real era Alberto Díaz Gutiérrez — fez apenas duas fotos do Che durante esse ato, segundo mostra o museu londrino, que exibe o filme usado pelo fotógrafo cubano.

Na célebre imagem, com boina e olhar sonhador, o "guerrilheiro heróico", então ministro da Indústria de Cuba, encara o horizonte. Curadora da exposição, Trisha Ziff  exagera ao dizer que se trata da “foto mais difundida e reproduzida no mundo inteiro”. Outros elementos e outras tantas pesquisas seriam necessários para se julgar a visibilidade dessa imagem.

O lucro no lugar da razão
O problema não está aí. De pôsteres a cadernos, de óculos a preservativos, a foto do Che altaneiro foi reproduzida de tal forma a diluir o significado de uma vida revolucionária. Uma vida que inclui a luta contra o imperialismo e pela soberania dos povos.

Ao partir dessa imagem, o Victoria & Albert — um dos museus de artes aplicadas mais importantes do mundo — dá coro à distorção. A mostra traz cartazes, filmes, roupas e objetos comerciais e artísticos inspirados na foto de Korda e procedentes de mais de 30 países. O museu diz fazer "a narrativa" da imagem. O efeito desejado é testemunhar uma “causa perdida”, ainda que a Revolução Cubana continue viva, 47 anos após sua eclosão.

A imagem do líder revolucionário deu origem a uma milionária indústria, que a usa em uma variedade de produtos de consumo. No México, a figura do Che está presente em preservativos, enquanto aparece estampada em caixas de lenços descartáveis nos Estados Unidos, garrafas de vinho na França e maços de cigarro na Espanha. Uma empresa australiana, mais despudorada, chegou a lançar um sabor de sorvete inspirado no nome do líder guerrilheiro: "Cherry Guevara".

Já uma fabricante de cremes para lábios sabor goiaba a usou como imagem da marca. "Rebele-se contra a secura dos lábios", diz o anúncio. Recentemente o estilista francês Jean Paul Gaultier a usou para vender óculos de sol, e Madonna vestiu a boina do guerrilheiro para vender seu álbum "American Life". Para organizar a mostra no museu londrino, os curadores vasculharam mercados de pulgas e a internet em busca de objetos. Encontraram também camisetas de todas as cores com a imagem estampada do Che e seu olhar enigmático para o porvir.

“A ideologia capitalista tem uma incrível capacidade de incorporar alguns elementos da cultura alternativa, até mesmo revolucionária, e transformá-los em objetos de mercado, formas sem conteúdo, neutras, inofensivas”, acusou o historiador Augusto Buonicore, em artigo publicado no Vermelho em 2002. “O ícone”, prossegue Buonicore,  “não tem dúvidas ou medos, é um fantasma que não convive com as malditas contradições cotidianas".

Na opinião do historiador, “para compreender o verdadeiro Che, é preciso ir para além do ícone, além da marca, além do mito. O ícone, em geral, não tem sangue correndo nas veias, não tem carne e osso, não sente fome ou frio”.