Eleição deste domingo pode mudar futuro da Bolívia

A Constituição boliviana de 1967, reformada em 1994, foi apontada nos últimos anos como um dos entraves para a estabilidade do país. Neste domingo (2/7), sob a liderança do presidente Evo Morales, mais de três milhõ

Desde às 8h da manhã (9h em Brasília) e durante oito horas, cerca de 3,7 milhões de cidadãos registrados votarão sob a supervisão de 120 mil júris eleitorais.

Na primeira cédula, os bolivianos escolherão os 255 legisladores que redigirão uma nova Carta Magna a partir de 6 de agosto na cidade de Sucre, a capital constitucional do país.

Destes, 210 sairão das 70 regiões eleitorais existentes, enquanto os 45 restantes virão diretamente dos nove departamentos (estados) bolivianos, cinco de cada um.

Para seus defensores, liderados por Morales, a Assembléia Constituinte representa o ponto alto da luta dos setores menos favorecidos da Bolívia pelo poder.

Desde 2002, o país enfrentou uma grave crise política e social que deixou dezenas de mortos, marcada pela passagem de quatro presidentes diferentes.

Na segunda cédula, os cidadãos votarão em um referendo sobre a instalação de um regime autônomo que despertou tanto ou mais interesse que a Constituinte.

A consulta estabelece que as competências das futuras autonomias serão fixadas pela Assembléia Constituinte. As regiões onde a resposta ao plebiscito for afirmativa terão uma grande arma para pressionar o Governo central, com sede em La Paz.

O defensor deste modelo administrativo é o departamento de Santa Cruz, o mais rico do país andino. Para demonstrar a "força' de sua reivindicação separatista, os líderes civis e empresariais de Santa Cruz reuniram 500 mil pessoas na capital do departamento na última quarta-feira.
Em resposta, Morales pediu a seus seguidores que votem "não" no plebiscito. Para o presidente, o referendo identifica os defensores do regionalismo, as "oligarquias" e os partidos tradicionais que foram derrotados nas eleições gerais de dezembro.

A discussão sobre as autonomias, apoiada pela principal força da oposição, o Poder Democrático e Social (Podemos), foi um dos principais temas da campanha eleitoral, que durou dois meses e foi encerrada na última quinta-feira.

Normalidade

A um dia da votação, o presidente da Corte Nacional Eleitoral, Salvador Romero, disse hoje que, "de acordo com os relatórios que temos recebido dos cortes departamentais, tudo está transcorrendo em um ambiente de tranqüilidade".

"Temos certeza de que amanhã (domingo) o ato eleitoral transcorrerá em um ambiente de calma", destacou Romero.

Segundo o canal de televisão "Unitel", de Cochabamba, o presidente Morales renovou sua carteira de identidade na última hora para poder votar na pequena cidade de Villa 14 de Setembro, em Chapare.

O vice-presidente, Álvaro García Linera, pediu na sexta-feira à noite para os cidadãos irem às urnas com espírito cívico e participarem "deste fato transcendental", apesar da proibição de fazer campanha nas 48 horas anteriores à votação.

Segundo García Linera, para a atual geração de bolivianos "não haverá um fato político e democrático tão importante quanto a Assembléia Constituinte e o plebiscito sobre autonomias regionais".

Além disso, expressou sua convicção de que, além do confronto de idéias, a eleição será "uma festa democrática" na qual "a população saberá responder com maturidade cívica e cidadã, como sempre tem feito".

Forças políticas em extinção

O jornalista e professor de Ciência Política da Universidade Real de La Paz, Roger Cortez, um dos mais agudos analistas do processo político Boliviano concorda com esta avaliação.

Autor do livro “Poder e processo constituinte na Bolívia”, Cortez avalia que mesmo nos anos mais duros da implantação do modelo neoliberal, a ebulição social indígena já prenunciava as mudanças que ocorrem atualmente no país. Quando lhe perguntam “O que vai acontecer à Bolívia?” Cortez não titubeia e responde “Já aconteceu”. A chegada ao poder de um líder das maiorias indígenas, secularmente marginalizadas pelas elites brancas, mostra uma transformação profunda na sociedade boliviana. Na sexta-feira, 30, Roger Cortez falou à agência Carta Maior. Eis os principais trechos da entrevista.

Estamos às vésperas de uma eleição decisiva para a Bolívia. No entanto, o que se vê nos meios de comunicação é apenas um debate sobre a autonomia regional. O que se passa?

RC – O baixo perfil da campanha para a Assembléia Constituinte se deve às próprias características do evento. Vamos eleger 255 assembleístas, que têm a tarefa de elaborar um projeto de Constituição. Quem obtiver dois terços dos votos, poderá aprovar toda a Constituição. Os constituintes, na realidade, são 3,5 milhões, que referendarão ou não a nova Carta. Esse é o número de eleitores do país. Isso faz com que o perfil dos que se elegerão no domingo diminua. Não são candidatos a algum cargo como o de prefeito ou deputado, é um poder de outra natureza.

Como se distribuirão as forças na Assembléia?

RC – A maior parte das forças políticas que chega até aqui – excetuando-se as alinhadas ao governo – são sobreviventes de uma tremenda derrota. Os três partidos com mais expressão, de oposição ao MAS (Movimento ao Socialismo, de Evo Morales), tiveram menos do que 12,5% dos votos nas últimas eleições e são agremiações em processo de extinção. Essas eleições representam sua última tentativa de sobrevivência. O que eles fazem agora? Agarram-se às bandeiras do “Sim” ou do “Não” à autonomia, buscando algum tipo de vitória. Na verdade, carecem de projetos e suas direções vivem uma perplexidade profunda. Sabendo que Assembléia Constituinte pode renovar tudo tentam manter o ‘status quo’ atual. A pergunta feita na cédula do plebiscito não é isenta e busca dirigir a Constituinte. Vamos ler sua primeira frase: “Você está de acordo, nos marcos da unidade nacional, em dar à Assembléia Constituinte o mandato vinculante para estabelecer um regime de autonomia departamental (…)?”. A frase busca colocar a decisão entre o “Sim” e o “Não” acima da Constituinte.

A Bolívia não é uma federação. Os Departamentos não têm leis próprias e nem assembléias legislativas. A reivindicação pela autonomia não seria justa?

RC – Eu acho perfeitamente válido incorporar a questão da autonomia dos Departamentos na Constituição. Mas o debate concreto tomou outro rumo. Tornou-se uma maneira de se criar uma falsa polarização entre setores empresariais, de oposição, e o governo. Por isso agora voto no “Não”. A Constituinte não pode ter nenhuma condicionalidade prévia. O debate atual sobre a autonomia não a qualifica e nem especifica se teremos também uma autonomia cultural, territorial e quais serão as hierarquias procedimento adotados. Mesmo que a Constituinte defina a autonomia, estará colocado apenas um princípio geral. Sua materialização será objeto de leis ordinárias no Congresso. A direita nunca quis discutir a Assembléia Constituinte.

O que ela quer?

RC – A oposição quer um plebiscito. Não está preocupada com a Constituinte ou com o número de votos que possa obter. Insegura de seu desempenho eleitoral, ela busca se proteger numa agenda própria. Assim, o “Sim” ou o “Não” definem muito pouca coisa. O que desejam é reduzir sua margem de derrota. Não obstante, a regra da Constituinte é aprovar as questões pela maioria qualificada de dois terços, o que favorece muito a minoria.

Além da direita, há uma oposição de esquerda ao governo?

RC – Sim. Mas a ultra-esquerda joga de maneira reflexa à da direita. Não entrou na disputa e não tem a Constituinte na agenda. São grupos que tiveram sua importância nas grandes lutas sociais de anos atrás, como o de Felipe Quíspe. Ele foi uma liderança central em 2000 e 2001. Em 2002 teve uma votação altíssima para presidente na capital: 180 mil votos. No ano passado não teve nenhum. Sua base indígena o castiga pelo autoritarismo e sectarismo racista.

Como o sr. vê a situação do governo boliviano diante do cenário internacional?

RC – Estou seguro que a legitimidade do governo deve aumentar. Evo tem uma capacidade impressionante de flexibilizar a tática política, mantendo seus objetivos. Quando se olha para as medidas tomadas nesses cinco meses de governo, pode-se ver que, apesar de seu impacto, elas foram feitas com uma prudência extrema. Ele estudou cada uma delas por vários meses e só deu passos que julgava seguros. Por isso, por sua habilidade, é que acho que não encontrará problemas maiores no plano externo.

O que poderá avançar no que toca à nacionalização dos recursos naturais?

RC – Não acredito que nesse processo Constituinte teremos surpresas na área da nacionalização dos recursos naturais. Ela foi feita de maneira muito equilibrada. A Assembléia Constituinte é um passo de um caminho já iniciado. Às vezes se pergunta “o que vai acontecer à Bolívia?” Eu respondo: “Já aconteceu”. Esse processo vem de anos nos porões da sociedade. Veja só: um menino indígena, pastor, vendedor de água nas ruas e líder sindical tem características tidas como negativas em nossa sociedade. Não é formado, não se comporta como as elites. Quando esse menino chega à presidência da República, mostra a milhões que tudo é possível. O discurso secular de que eles [os indígenas] seriam feios, incapazes, tortos e ignorantes cai por terra e mostra um profundo processo social em marcha. Por isso, a ação política precede a Assembléia Constituinte e temas como hidrocarbonetos e propriedade da terra serão apenas ratificados. O principal foi feito, não há surpresas.

Pessoalmente, o sr. é otimista ou pessimista com o processo?

RC – Sou tão otimista quanto a maioria da população boliviana. Há algumas semanas foi feita uma pesquisa e 64% dos sondados afirmou que nos próximos três anos sua situação será melhor ou muito melhor. Isso é surpreendente, pois a Bolívia foi um laboratório do pessimismo nos últimos 15 anos. O mesmo se aplica à economia. É preciso entender que esse processo indígena já existia mesmo nos anos em que o neoliberalismo tinha muita força. Estamos na verdade, entrando numa disputa sobre o papel do Estado. Ficará o Estado velho, centralizador e anti-democrático, ou teremos um novo, democrático, público e participativo? A meu ver a construção do novo Estado deve envolver três questões básicas. A primeira é ser um Estado intercultural. Temos um governo intercultural apoiado pela maioria da população, que deve ter maioria na Constituinte. Em segundo, precisamos de uma reforma político-administrativa que envolva uma autonomia real. A terceira é a ampla presença popular a definir as bases desse novo Estado, para que o controle público e cidadão sobre ele seja definidor de seus rumos.

Fonte: Reuters e Agência Carta Maior