Venezuela no Mercosul: mais um golpe na Alca
A entrada da Venezuela no Mercosul, que passa a ser o quinto membro do bloco, é uma evidente boa notícia. No entanto, o noticiário da chamada “grande imprensa” faz um esforço tremendo para mostrar que o bloco tem mais a perder do
Publicado 04/07/2006 11:32
Por Osvaldo Bertolino
Segundo os neoliberais, os presidentes sul-americanos não vêem que o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, quer usar o bloco comercial para satisfazer a sua sede de influência política na região. A imprensa conservadora ouviu uma série de "especialistas" que apontaram o ingresso da Venezuela no Mercosul como um fator de “risco” para as relações da região com os Estados Unidos. O ex-embaixador do Brasil em Washington e membro da equipe que assessora o candidato Geraldo Alckmin, Rubens Barbosa, disse que Chávez “deve levar ao bloco uma série de assuntos que ninguém quer discutir, como as relações entre a Venezuela e os Estados Unidos”. O ex-embaixador do Brasil na Argentina, José Botafogo Gonçalves, também bateu na mesma tecla. Para ele, a “obsessão de Chávez de organizar uma agenda latino-americana segundo a qual seria bom para a região opor-se aos Estados Unidos” não interessa aos demais integrantes do bloco.
Outros analistas da mesma estirpe disseram que os líderes do Mercosul erram ao permitir a “ideologização” do bloco — como se essa pregação não fosse uma manifestação ideológica abertamente pró-Área de Livre Comércio das Américas (ALCA). No estudo do comércio internacional, há sempre um ponto a partir do qual é possível contestar a tese de que o mercado é o conceito fundamental para explicar o sucesso ou o fracasso de um país: o papel do Estado. No caso da América Latina, esse papel está claramente em disputa. Essa pregação contra a decisão dos principais líderes do Mercosul de rejeitar a ALCA mostra que os conservadores não desistem de usar qualquer pretexto para tentar barrar a atual tendência progressista da região.
A entrada da Venezuela no Mercosul é mais uma derrota daquela previsão do arrogante ex-chefe do escritório de Representação Comercial dos Estados Unidos (USTR), Robert Zoellick — aquele que Lula chamou de "sub do sub do sub" —, segundo a qual se o Brasil não aceitasse a ALCA o país teria de fazer negócios "com a Antártica". O raciocínio brasileiro na tomada de decisão por esse rumo é simples: o falso cosmopolitismo econômico da "era FHC" gerou, além de outras coisas, um vermelho em nossa balança comercial diante do qual o superávit atual parece azul-turquesa. Os neoliberais construíram a ofensiva contra o Estado brasileiro — desregulamentação, privatização e "reformas" estruturais — com o claro objetivo de preparar o país para a ALCA.
Política de anexação
Foi por aí que os monopólios estrangeiros viram a oportunidade de alargar a base legal para que a sua lógica fosse instalada no país — tese sintetizada por Lula em sua famosa frase de que a ALCA não é política de negociação, mas de anexação. "Temos setores competitivos, como a agricultura, a indústria têxtil, mas temos de pensar na indústria como um todo", disse Lula, quando ainda era candidato à Presidência da República. Ele foi mais além ao lamentar que o Mercosul não estivesse forte o suficiente para as negociações sobre a ALCA. "O melhor para o Brasil, nas negociações da ALCA, seria participar das discussões integrando o Mercosul", disse.
O fortalecimento do Mercosul atraiu a atenção de outros países da América Latina. Até o México manifestou interesse em se aproximar do bloco. E isso fez com que os aliados de Washington reagissem. O próprio presidente mexicano, o conservador Vicente Fox, manifestou opinião frontalmente contrária à defesa da integração latino-americana. "Não podemos nos esquecer que, sob o ponto de vista financeiro, o México se move hoje na esfera da América do Norte e do dólar, mais do que na esfera da América Latina", disse. (Fox voltou a manifestar sua opinião pró-ALCA na Cúpula dos Povos em Mar del Plata, Argentina, em novembro do ano passado. Ele disse que os 29 países “a favor da ALCA” poderiam implementar a "integração regional" sem a participação dos países do Mercosul.)
Era uma afirmação que não correspondia à tradição do povo mexicano. O México nunca serviu de comparsa dos Estados Unidos. A proximidade com Cuba não foi interrompida nem quando a Organização dos Estados Americanos (OEA), seguindo ordens do Departamento de Estado norte-americano, determinou o rompimento de relações com o governo revolucionário de Havana. A Cidade do México é cercada por uma grande avenida chamada "Insurgentes".
Superestado do Sul
Apesar desse histórico, as relações comerciais do México com os Estados Unidos estão tão trançadas que, mesmo que o candidato progressista Andrés Manuel López Obrador ganhe as eleições, será difícil, num primeiro momento, para o país se aproximar do Mercosul. "Os países da América Central para cima estão na órbita norte-americana e em alguns casos inclusive dependem das remessas de imigrantes que vivem nos Estados Unidos", disse recentemente o cientista político e historiador Luis Moniz Bandeira. Para ele, Brasil e Argentina são capazes de formar na América do Sul "um superestado como a União Européia". A integração ao Mercosul de países da Comunidade Andina (Bolívia, Colômbia, Equador e Peru) potencializaria esse superestado.
O historiador considerou que "há uma guerra psicológica em curso na América do Sul" e disse que "a campanha no Brasil contra o governo Lula é contra a política externa, não contra a política econômica". Moniz Bandeira acrescentou que o governo norte-americano "está tentando penetrar" na América do Sul "através da Colômbia, mas enfrenta a resistência da Venezuela". Além disso, "já perdeu a Bolívia e está muito preocupado". "Os Estados Unidos não compreendem que figuras como Hugo Chávez na Venezuela e Evo Morales na Bolívia existem porque o Brasil é governado por Luiz Inácio Lula da Silva, e a Argentina, por Néstor Kirchner", acrescentou. A conseqüência é que o projeto norte-americano de criar a ALCA "entrou em colapso”. Para ele, a América do Sul não tem saída se não se unir, e o eixo dessa união pode ser formado por Brasil, Argentina e Venezuela.
Voz proeminente
Isso explica a campanha contra a entrada da Venezuela no Mercosul. Ela traz complicações, por exemplo, para a campanha de Alckmin, que tem como um dos pilares a promessa de uma guinada radical na política externa brasileira. A senha para a volta da campanha pró-ALCA foi dada pelo próprio Alckmin ao apresentar sua plataforma de presidenciável no final de agosto do ano passado. Ele classificou de "erro" o abandono, pelo governo Lula, da discussão sobre a ALCA.
Na prática, seria um retrocesso. O governo Lula promoveu a reestruturação de sua política externa basicamente em dois campos. Primeiro, o Itamaraty, o órgão responsável pela política de comércio exterior, está se recuperando da debilidade causada pela decisão do governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) de entregar o comércio exterior a um grupo de 45 diplomatas, nove dos quais acreditados em Genebra e seis na missão junto à União Européia, em Bruxelas — nenhum deles especialista em ALCA.
E ainda por cima FHC tratou de calar na instituição a voz mais proeminente que se levantou contra a ALCA: a do ex-diretor do Instituto de Pesquisas em Relações Exteriores (Ipri), Samuel Pinheiro Guimarães, demitido pelo então ministro das Relações Exteriores, Celso Lafer. O motivo: as repetidas e enfáticas criticas à entrada do Brasil na ALCA. Essa injustiça foi reparada pelo governo Lula, por meio de seu chanceler Celso Amorim, que nomeou o embaixador demitido pelo neoliberalismo para a Secretaria Geral do Itamaraty. Desde então, as declarações de Lula e Amorim sempre indicaram a perspectiva de fortalecimento das relações entre os países da região — a começar pelos integrantes do Mercosul.
Arena macroeconômica
O segundo campo debilitado pela "era FHC" no enfrentamento das negociações da ALCA refere-se ao enfraquecimento da soberania econômica do país. O presidente Lula tem posto o dedo nessa ferida brasileira — e nem sempre suas observações mereceram a atenção devida —, ao afirmar reiteradas vezes que em vez de apontar as causas para nossas mazelas naquilo que é externo ganharíamos mais se assumíssemos nossos problemas de frente. É verdade que Washington é arrogante com os demais países americanos. Também é verdade que os Estados Unidos são ricos em grande medida por nos explorar covardemente e que nós somos pobres por sermos covardemente explorados por eles. Mas antes disso vem a forma como trabalhamos nossos problemas internamente. E o sentindo principal da construção lenta e paciente da engenharia política que levou Lula à Presidência da República é exatamente o de enfrentar essa nossa debilidade histórica.
É preciso perceber que a arena macroeconômica dos Estados Unidos esteve sempre, desde os seus primórdios, montada para a expansão de suas empresas — sobretudo para o sul da América. O "sonho americano", um dos fios condutores da história dos Estados Unidos, traduz-se na imagem de uma economia que busca sobrepujar as outras. Particularmente na segunda metade do século 20, as forças produtivas norte-americanas foram organizadas ao redor do princípio do expansionismo e do retorno rápido dos investimentos. Atualmente, um dos patamares mínimos para que uma empresa coloque dinheiro em um projeto é a viabilidade de o negócio gerar um faturamento de pelo menos US$ 50 milhões em um período de cinco anos. Evidentemente, há setores no Brasil que acham essa política uma boa alternativa porque eles ganham com ela. Mas o país certamente perde.