Belluzzo: “Hoje em dia, as chuteiras não têm pátria”
A Copa acabou para o Brasil, mas como daqui a quatro anos tem mais, vale a pena aproveitar este momento para analisar a derrota futebolística que ganhou feição de tragédia nacional. Se éramos o melhor do que havia no mundo
Publicado 08/07/2006 13:31
A derrota do Brasil na Copa do Mundo, bastante precoce diante das expectativas que a seleção havia gerado, despertou um furacão de emoções nos torcedores brasileiros. Raiva, sofrimento, dor e ódio – tudo isso se misturou quando o árbitro apitou o final da partida contra a França de Zinedine Zidane, deixando para o público que se vestiu de verde e amarelo uma desagradável sensação de que fora ludibriado por Ronaldinho e companhia.
A Copa acabou para o Brasil, nem Portugal de Felipão conseguiu chegar a final, mas como daqui a quatro anos tem mais, vale a pena aproveitar esse momento para analisar esta derrota futebolística que ganhou feição de tragédia nacional. Como ídolos podem se transformar em vilões depois de alguns minutos de jogo? Se éramos o melhor do que havia no mundo, como perdemos?
Para dar algum rumo a esse debate, a Carta Maior procurou um dos maiores economistas brasileiros, o professor da Unicamp Luiz Gonzaga Belluzzo, que por sinal também é apaixonado por futebol. Palmeirense de carteirinha, o economista vive há anos o dia-a-dia do clube e em 1993 foi um dos responsáveis por criar o modelo de co-gestão com a Parmalat, inaugurando um dos períodos mais gloriosos do clube.
Nesta entrevista, Belluzzo analisa a derrota brasileira e faz uma distinção que para ele é fundamental: qual era o potencial de fato da equipe treinada por Carlos Alberto Parreira e qual era o potencial que foi “vendido” ao público pela mídia. Segundo ele, a transformação cada vez mais intensa do futebol em um negócio explica esse descompasso entre a expectativa do público e a realidade.
Ao contrário da opinião de boa parte dos torcedores e jornalistas, Belluzzo não se surpreendeu com o desempenho da seleção. “Eles jogaram de acordo com aquilo que eu esperava. Eu via um time com falhas, que o tal do quadrado, celebrado como grande diferença do Brasil em relação aos outros, era um erro, porque você colocava dois jogadores fixos na frente, e não havia aproximação do resto do time”, diz ele.
Apesar dos problemas, a mídia e o business do esporte ajudaram a erguer uma cortina de fumaça sobre nossa seleção. Ao longo desta entrevista, Belluzzo defende que o "capitalismo do futebol" precisa ser mais regulado, opina sobre a influência que a derrota brasileira pode ter nas eleições presidenciais e diz quem é seu treinador preferido para assumir o lugar de Parreira.
Carta Maior – Muitos dos que sofreram com a derrota do Brasil para a França reclamaram que faltou amor à camisa, dedicação em campo, e até que foram poucos os jogadores que choraram após a partida. O senhor concorda?
Luiz Gonzaga Belluzzo – Essa é uma visão muito sentimental e moralista do que aconteceu. Futebol hoje é um produto do mercado e os jogadores são profissionais. Eu conheço o futebol desde 1947 e posso dizer que ele se transformou em um business, um grande negócio. O futebol brasileiro acompanhou essa evolução mundial, sobretudo a partir dos anos 80 e 90. E os jogadores são inexoravelmente envolvidos nesse clima. Boa parte dos jogadores brasileiros virou garoto propaganda de uma série de produtos, os mais contraditórios possíveis, desde desodorante até automóvel.
Essa é a nova realidade. Mas até que na Copa do Mundo esse caráter mais mercantil do futebol diminui um pouco, os jogadores se entregam mais ao jogo. Então eu acho que a explicação para o fracasso do Brasil na Copa foi, do ponto de vista mercadológico, o exagero sobre a superioridade da seleção brasileira. E isso também faz parte do negócio. Os jogadores jogaram de acordo com aquilo que eu esperava. Eu via um time com falhas, que o tal do quadrado, celebrado como grande diferença do Brasil em relação aos outros, era um erro, porque você colocava dois jogadores fixos na frente, e não havia aproximação do resto do time. Em todos os jogos, desde o primeiro com a Croácia, passando pela Austrália, com exceção da partida com o Japão, que tem um time muito fraco, esse defeito do Brasil apareceu. Só que na hora H não dava pra mudar mais. O Parreira treinou de um jeito durante um tempão, insistiu naquilo, aliás fazendo o que a mídia pediu.
CM – A mesma mídia que depois “escalou” o Juninho Pernambucano na fase final…
Belluzzo – Pois é. Essa relação entre a mídia, os negócios e o futebol tem de ser analisada com mais frieza. Aí está a explicação para muitas das expectativas que se criam em torno do time. Muita gente diz que o grande problema é que as pessoas aceitam o que dizia o Nelson Rodrigues: que a seleção é a pátria de chuteiras. Mas hoje em dias as chuteiras não têm pátria.
CM – Mas a seleção ainda não é, ao mesmo tempo, um espaço em que outros valores, menos mercadológicos, aparecem? Durante as Copas há mais união, esperança, alegria, e o jeito que a mídia vende o espetáculo toca nessas questões.
Belluzzo – Você tem razão, é um processo contraditório. Ao mesmo tempo que você usa isso como instrumento do marketing e da propaganda, por outro lado você suscita esses sentimentos de amor a pátria. Mas é assim mesmo. É verdade que os jogadores não choraram, mas essa reação não é mais tão apropriada, porque os jogadores jogam nos mesmos time. No final da partida, o Robinho foi dar um abraço no Zidane, que joga com ele no Real Madri. Isso tem um lado é positivo, porque você dá ao esporte a dimensão que ele deve ter, de uma disputa esportiva que você pode ganhar, perder ou empatar.
Já se foi o tempo da exploração nacionalista do esporte que a mídia faz. Isso tem antecedentes terríveis. Os jogos olímpicos de 1936, as vitórias da Itália no tempo do fascismo, do Brasil na época da Ditadura, tudo isso explorado de uma maneira vergonhosamente política.
Depois dos dois primeiros jogos, eu disse que dificilmente o Brasil iria para a final, por não estava jogando bem. Não que essa Copa tivesse grandes desempenhos, um nível técnico bom, mas essa expectativa criada no Brasil da superioridade absoluta, do já ganhou, eu já assisti várias vezes. O Ronaldinho, considerado sempre como o melhor do mundo, mostrou que está longe de poder ser considerado tão superior aos outros. Eu apostei muito ao Kaká, mas ele também jogou abaixo do que podia. A euforia durante Copas do mundo sempre existe, mas de Copa para Copa ela é cada vez mais construída pela mídia e pelos negócios.
CM – A propósito, o senhor acha que o desempenho do Brasil na Copa influenciará as eleições?
Belluzzo – Não, o povo está separando os níveis, não se mistura mais o destino do país com o destino do futebol. A repetição das eleições para presidente está deslocando a discussão para o terreno propriamente político, dos programas e das realizações dos candidatos.
CM – O senhor reconhece que o business no futebol é um dado, mas é conveniente limitar isso?
Belluzzo – Acho que sim. Até o próprio (Joseph) Blatter, que é herdeiro do (João) Havelange, o presidente da Fifa que impulsionou a mercantilização do futebol, está achando que as coisas estão indo longe demais. O (Franz) Beckenbauer, organizador da Copa, deu uma declaração para alertar que a presença dos negócios no futebol pode produzir uma distorção ainda maior no que está acontecendo hoje no mundo esportivo e particularmente no futebol. Veja esse episódio na Itália de manipulação de resultados, nós tivemos na Alemanha episódios de compra de juízes…
CM – E no Brasil também.
Belluzzo – Exatamente, e misturado com apostas. O episódio de 1998 é emblemático, quando o Ronaldo teve uma convulsão. Segundo as informações que eu tenho, de gente que estava lá dentro, de jogadores respeitáveis e sérios, o Ronaldo não tinha condições de jogar e jogou por imposição dos patrocinadores.
CM – Da Nike?
Belluzzo – Isso, da Nike. Isso foi dito por gente que assistiu à cena. O Edmundo já estava pronto para entrar, estava escalado, mas foi sacado na última hora porque houve uma pressão desse tipo. Como em todas as atividades hoje, você precisa impor limites, impor limites legais e impedir que ela seja totalmente açambarcada pelos negócios, porque se isso ocorrer ela vai se autodestruir, com o futebol perdendo a credibilidade.
CM – Outra questão que sempre volta à cabeça do torcedor em momentos de derrota é que nesta seleção todos os 11 jogadores vivem no exterior e não teriam mais um vínculo afetivo tão forte com ela. Aliás, essa foi a primeira vez que isso ocorreu. Em 90, ainda o Taffarel e o Mauro Galvão jogavam no Brasil.
Belluzzo – Eu acho que isso muda a perspectiva do jogador. Ela convive com um companheiro de clube que vai ser adversário dele na Copa. Eu não sei se isso necessariamente diminuiu o empenho do jogador ou a importância de estar ali, mas eu acho que diminui a agressividade. Foi assim nesta Copa, exceto naquele jogo da Argentina (contra a Alemanha), porque os argentinos são um caso à parte (risos)…
CM – Mas o senhor acha que é melhor misturar mais jogadores que jogam aqui e fora?
Belluzzo – O fato de jogar fora prejudica um pouco o entrosamento do time, a formação da equipe, o fato de um jogador ter sempre de viajar, disputar eliminatórias aqui, ou disputar amistosos fora. Mas o futebol é o esporte mais globalizado, mais cosmopolita, até no Nepal, no Turcomenistão, o cidadão arruma uma televisão para assistir à Copa. Eu não acho ruim isso, esse lado ecumênico do futebol.
CM – Então para o senhor não tem sentido vetar jogador só porque ele joga no exterior?
Belluzzo – Não, não. O que eu acho ruim é essa tendência do futebol a se tornar cosmopolita seja acompanhada de um crescente poder do merchandising e do dinheiro, porque isso inevitavelmente vai levar a um resultado desagradável. Mas o fato de ter jogador no exterior talvez ajude a criar um espírito mais pacificador no esporte. Porque você sabe que o esporte é uma forma de domestificação e controle da violência. É a "violência domesticada", como disse o Norberto Elias, que era aliás grande admirador do futebol.
CM – Ainda sobre o business, existe alguma experiência sendo feita em termos de regulação?
Belluzzo – Eu acho que isso só pode ser feito na medida em que a Fifa coloque limites. O salário dos jogadores já são insuportáveis e daqui a pouco isso vai começar a quebrar os clubes. Não tem sentido se pagar 100 milhões de euros por um passe de jogador, isso é um despropósito. Há casos de empresas suspeitas que se meteram no futebol, por exemplo, para fazer lavagem de dinheiro ilegal. Não se pode deixar isso avançar.
CM – O capitalismo do futebol está desregulado…
Belluzzo – Totalmente. O Blatter falou disso e o Beckembauer também. É preciso colocar limites. Sem isso, os clubes regionais vão ser destruídos. O futebol brasileiro está ameaçado de ter um ou dois clubes com presença internacional, e isso não interessa pra gente. Aquele G-14 (grupo que reúne clubes europeus como Barcelona, Juventus, Milan e Real Madri) no fundo está tentando impor o monopólio no futebol. Se isso ocorrer, você não consegue regular mais. O futebol é como a imprensa, que é praticada privadamente, mas de interesse público. Então você tem obrigação de discutir essa questão da regulamentação.
CM – Voltando a Copa, o Parreira enfatizou uma oposição entre o futebol arte e o futebol de resultados. Isso não se contradiz com a tradição brasileira, que sempre juntou esses dois conceitos?
Belluzzo – Eu acho que não há essa oposição. O Felipão falou a mesma coisa, que preferia jogar feio e ganhar do que jogar bonito. Mas o problema é que tem time que não consegue fazer as duas coisas. A seleção de 1970 era eficiente e jogava bonito. O time de 1958, que eu vi apenas por filmes, a mesma coisa. O meu time (Palmeiras), por exemplo, a Academia de 1965, jogava bonito e era eficiente, o mesmo com a equipe de 1993-94. O Flamengo de 1981, o Santos dos anos 50 e 60 era uma maravilha, o São Paulo do Telê. Ou seja, essa oposição é no mínimo discutível.
CM – O senhor não acha que a desorganização e o amadorismo que ainda prevalecem no futebol brasileiro incentivam a ida dos jogadores para fora? Talvez muitas das questões que estamos discutindo não ocorreriam.
Belluzzo – Há um descompasso enorme entre a organização interna do futebol brasileiro e a realidade do futebol mundial. Por isso eu defendo que futebol é uma questão em que o poder público tem de se envolver, porque é um esporte nacional. Você não pode dizer que futebol é uma questão à parte, privada, particular. Futebol tem uma importância enorme, cultural, social e até psicológica. O Brasil tinha de ter uma política para o futebol, como aliás os ingleses fizeram com seus times a partir de meados dos anos 80 e início dos 90, como os espanhóis também fizeram.
No Brasil há um certo receio de se falar nisso porque há a crítica de que o país tem tantos problemas e se estaria dando importância para uma questão menor. Mas não é uma questão menor, ela faz parte do cotidiano dos brasileiros e portanto é importante. Sim, tem de promover a reorganização das estruturas do clubes, que não podem ficar nas mãos de quem estão hoje. As regras que regulam a organização dos clubes não são adequadas. Os clubes nasceram como clubes-sociais, e hoje há um conflito entre o clube-social e a administração do futebol. Você não pode misturar as duas coisas. Tem de separar, criar regras especiais, criar incentivos para que os clubes mudem sua estrutura de organização, que se ajustem ao futebol moderno, tanto quanto ao calendário quando aos padrões de gestão financeira e econômica.
CM – Para terminar, qual é melhor técnico para substituir Parreira. Agora se fala em Felipão, Altuori e Luxemburgo.
Belluzzo – Para mim quem reúne mais qualidades, do ponto de vista de conseguir controle do grupo, capacidade de comando, de organizar taticamente a equipe, é o Felipão. Ele não é um técnico grosso e somente agregador, como as pessoas pensam. Mas quem tem mais talento tático, e que vê o jogo com mais clarividência, que pode mudar o jogo, é o (Vanderlei) Luxemburgo. Agora, eu vi o (Paulo) Altuori treinar o Peru, ele tem potencial, mas acho que ainda não se equipara aos outros dois.
CM – O Parreira ficar, nem pensar?
Belluzzo – Eu acho que o Parreira encerrou seu ciclo, como ele mesmo disse. Ele foi bem em 1994, pegou aquele time que era mais limitado e arrumou direito. Parreira já é campeão do mundo e não precisa mais se submeter a este sofrimento.