Brigadeiro Montenegro, um cearense visionário

O cearense Casimiro Montenegro foi um visionário militar brasileiro que, em 1950, criou o ITA (Instituto Tecnológico de Aeronáutica). Toda a trajetória de Montenegro, uma vida pontuada por momentos de vitórias e derrotas, é contada em livro por Ferna

Infelizmente, os cearenses mal conhecem um homem chamado Casemiro Montenegro. Precisou que um jornalista e escritor mineiro como você o “descobrisse” para nós. A que você atribui este desconhecimento em torno de um personagem tão fascinante da história do Brasil?


 


Primeiro, atribuo isso à velha história que diz que “santo de casa não faz milagre”. Mas, infelizmente, não eram só os cearenses que desconheciam a figura e a obra do marechal Montenegro. Eu próprio, que vivo em São Paulo há 40 anos, estive dezenas de vezes no ITA e que devo muitas de minhas reportagens às caronas que peguei no Correio Aéreo Nacional, jamais associara seu nome a essas duas obras.


 


Então como você “descobriu” Montenegro? Qual a primeira vez que ouviu falar nele?


 



Um dia depois da morte de Montenegro, no começo de 2000, recebi na França, onde vivia, um e-mail de um amigo brasileiro contando que tinha morrido um personagem com características que, na opinião dele, davam um livro. Na época, porém, eu estava escrevendo “Corações Sujos” e não pude sequer passar os olhos sobre o assunto. Quando retornei ao Brasil, dois anos depois, uma casualidade familiar me aproximou dos Montenegro – dona Antonietta, sua viúva, e seus filhos – e foi aí que comecei a pesquisar e ficar fascinado com sua vida.


 


E qual o grande legado que Montenegro nos deixou?


 


Numa época em que o Brasil importava até penicos, Montenegro sonhou em fabricar aviões no Brasil. Foi considerado um louco varrido. Na verdade, era um visionário. Deu até a última gota de seu sangue e de seu suor por este ideal. Acabou fundando o ITA – um centro avançado de estudos de engenharia aeronáutica e que viria a ser o berço da Embraer, uma das maiores fábricas de aviões do planeta.


 


Seu livro revela como alguns setores da Aeronáutica, capitaneados pelo brigadeiro Eduardo Gomes, eram contrários à idéia da criação do ITA. Ao desconstruir o mito Eduardo Gomes você não acha que vai melindrar a parcela mais conservadora da Força Aérea?


 


Quem ler “Montenegro” vai constatar que não há uma sílaba, uma vírgula, um hífen de opinião minha – seja a respeito do quê ou de quem for. Tudo o que está contido nas 328 páginas do livro é fruto de entrevistas gravadas e – nunca é demais lembrar – dos cadernos de notas e vídeos deixados pelo marechal Montenegro. São registros, reminiscências e revelações feitas em primeira pessoa, não é material de segunda mão. O livro é também isso: a história da amizade de meio século de dois camaradas de armas, Montenegro e Eduardo. Uma amizade que resistira a revoluções, golpes de estado e quarteladas, mas desmoronou em 1964, quando Eduardo Gomes, ministro da Aeronáutica do marechal Castello Branco, demitiu Montenegro da direção do ITA, mandando-o à reserva.


 


Por que isto aconteceu?


 


Montenegro e Eduardo Gomes tinham concepções diferentes do que deveria ser o ITA. Eduardo Gomes defendia que fosse um centro de engenharia aeronáutica para apoio tecnológico à FAB. Montenegro pensava mais alto e sonhava com uma cópia do MIT, dos Estados Unidos: uma instituição que produzisse conhecimento tecnológico para a sociedade como um todo. Montenegro perdeu a batalha para Eduardo Gomes, mas ganhou a guerra. Graças a seus esforços -ele chegou a mobilizar o Estado Maior da Aeronáutica e até o presidente Castello Branco – o ITA é hoje um patrimônio nacional.


Montenegro passou por cima da determinação do presidente Dutra, que não queria um comunista como Oscar Niemeyer assinando o projeto arquitetônico do ITA. Estamos diante de uma espécie diferente de militar, que desobedecia ordens de seus superiores desde que as julgasse injustas ou absurdas?


 


Ele costumava repetir uma máxima que valia para situações como essa: os regulamentos não foram escritos por Deus, então qualquer ser humano pode mudá-los. No caso da encrenca do presidente Dutra contra Oscar Niemeyer, Montenegro poderia ter feito um escândalo, tal era o despropósito da proibição. Ele, no entanto, apenas pediu a Niemeyer que arranjasse alguém para assinar as plantas em seu nome. Pronto, problema resolvido. O presidente Dutra chegou a visitar as obras do ITA sem saber que daquelas formas arredondadas de concreto exalava o miasma do marxismo-leninismo professado por Niemeyer (risos)…


 


O marechal Montenegro acabou sendo afastado do ITA após o movimento militar de 1964. Em que exato momento ele passou a ser considerado uma pessoa incompatível com o novo regime, inaugurado por outro marechal cearense, Castello Branco?


 


O ITA foi uma das primeiras vítimas do golpe de 1964. A crise começou quando os formandos escolheram para paraninfo o pensador cristão Alceu de Amoroso Lima, já então um adversário público do regime. Aí instauraram um Inquérito Policial Militar dentro do campus e, ao final dele, dezenas de alunos e professores foram presos ou afastados do ITA. O golpe de misericórdia foi dado por Eduardo Gomes, nomeado ministro da Aeronáutica por Castello, que demitiu Montenegro da direção do CTA/ITA.


 


Ao final do livro, você narra o afastamento recente de um reitor do ITA que, há dois anos, decidiu diplomar os alunos que haviam sido expulsos do instituto durante a ditadura. As desavenças entre as idéias democráticas de Montenegro e a chamada “linha dura” dos quartéis é uma ferida que ainda não está devidamente cicatrizada?


 


Exatamente. O movimento pacificador imaginado pelo reitor Michal Gartenkraut acabou custando sua própria cabeça. Semanas após a diplomação dos estudantes punidos em 1964, o professor Gartenkraut seria sumariamente afastado da reitoria, dando lugar a um brigadeiro.


 


Você mostra um Montenegro de carne-e-osso, sem procurar retratá-lo como um homem imaculado. Qual a reação da família do biografado ao livro?


 


Montenegro foi um bon-vivant, um homme a femmes. Bonitão, olhos azuis, sobrancelhas hirsutas, ele só se casaria aos 51 anos, já brigadeiro. Namorador, ele fazia enorme sucesso com as mulheres, no Brasil e no Exterior. Nos fundos de suas malas, encontrei bilhetinhos de amor, cartas assinadas com batom e incontáveis promessas de “um dia voar ao Brasil” em sua companhia. Quando decidiu encerrar a carreira de galã, fez isso com chave de ouro: escolheu para sua mulher e mãe de seus filhos ninguém menos que a linda Maria Antonietta, filha de seu irmão mais velho, Júlio, 20 anos mais jovem que ele. Ela leu o livro depois de publicado e, ao contrário do que muita gente poderia imaginar, adorou.


 


Quanto tempo você demora para escrever um livro como Montenegro?


 


É difícil dizer isso com precisão. Se contarmos do início das pesquisas até a entrega dos originais à editora, foram quatro anos. Mas isso é um dado falso, já que eu quase nunca me dedico a um só projeto, em tempo integral.


 


Fonte: Diário do Nordeste