Marcados para morrer: O drama de quem apóia causas indígenas

Por João Negrão (Sina)


Tião do Cimi, irmã Lourdes, padre Balduino, padre Salomão, mestre Mário e padre Felício. Estes são os principais nomes de uma lista de marcados para morrer. Os seis são missionários e atuam com índios em Mato Gro

Desde sempre, missionários que ajudam índios sofrem ameaças, as quais em grande parte são consumadas. Mas em poucas vezes uma lista tão grande de pessoas com cabeça a prêmio surgiu em tão pouco tempo. O motivo, segundo analisam, é a sensação de impunidade gerada após a absolvição dos acusados de assassinar o irmão jesuíta Vicente Cañas. Não seria uma coincidência que as ameaças se intensificaram logo depois do julgamento do último acusado, finalizado em 9 de novembro do ano passado.


 


Tião do Cimi, por exemplo, vinha sofrendo ameaças desde antes do julgamento, do qual foi testemunha e um dos responsáveis pela reabertura do processo. Sebastião Carlos Moreira, casado, 53 anos, três filhos, foi coordenador do Cimi (Conselho Indigenista Missionário) em Mato Grosso e já ocupou o cargo de secretário adjunto nacional da entidade, em Brasília. Daí o apelido como é conhecido. Ele tem uma longa militância entre os índios e foi amigo de Vicente Cañas. Atuou com os Apiacá, Kayabi e Mundukuru e, enquanto dirigente do Cimi, sempre teve uma ação indigenista muito marcada em Mato Grosso.


 


Durante o julgamento, as ameaças contra Tião aumentaram. Recados davam conta de que sua cabeça estava prometida independente do resultado do júri. ''Na última etapa do júri, um índio Rikbaktsa informou que ele não podia nem pensar em aparecer em Juína que lá já tinha um pistoleiro pago para fazer o serviço'', relata uma missionária que não quis que fosse identificada. Aliás, todas as fontes desta reportagem pediram para não terem seus nomes revelados, temendo a inclusão na lista dos marcados para morrer.


 


Prisões arbitrárias
O padre Balduino Loebens, jesuíta, mora com os Rikbaktsa, na região de Juruena. Ele atua em Mato Grosso há mais de 40 anos e, ao longo desse tempo, já esteve perto da morte por duas vezes. Em ambas foi vítima de prisão arbitrária e espancamento por policiais a mando de fazendeiros. Os episódios ocorreram na década de 80. O primeiro aconteceu em Juína, onde foi acusado de apoiar trabalhadores rurais sem-terra. O segundo ocorreu em Juruena, acusado pelos fazendeiros de armar os índios que tentaram retomar uma área invadida por grileiros. Agora as ameaças pesam por conta do julgamento dos acusados de matar Vicente Cañas. Padre Balduino é uma das testemunhas, mas resolveu não participar do julgamento por causa das ameaças. ''Caso abrisse a boca seria morto imediatamente'', contou uma fonte.


 


A irmã Lourdes Christ, 61 anos, natural de Santa Catarina, membro da congregação Fraternidade e Esperança, da Igreja Católica, atua com os índios Arara, em Aripuanã, há cerca de 30 anos, desde os primeiros contatos com aquela comunidade indígena, no final da década de 70. Desde então vem tendo dificuldades com fazendeiros e madeireiros na região, que constantemente ameaçam invadir as terras dos Arara. Nos últimos anos, a situação ficou mais tensa e, há dois meses, a irmã Lourdes teve que abandonar a área sob forte investida dos madeireiros que, impunemente, invadem o território indígena para extrair madeira. ''Ela teve que sair da região, escondida à noite, por que sua cabeça, conforme anunciaram, já havia sido entregue aos pistoleiros'', informou outra fonte.


 


Isidoro Salomão é um padre diocesano que trabalha com os índios Chiquitano, etnia que ocupa tradicionalmente a área de fronteira de Mato Grosso com a Bolívia. Ao longo dos anos essas comunidades foram sendo expulsas de suas terras e por muito tempo não eram considerados pelos ''brancos'' sequer como índios: eram chamados de ''bolivianos'' ou ''bugres''. Graças à resistência dos índios e o apoio dos missionários, a Funai já identificou a Terra Indígena Portal do Encantado e a Justiça Federal está num processo de reconhecimento de suas terras e já determinou que Vila Nova Barbecho pode ocupar a fazenda para a sua sobrevivência, por exemplo. A partir de então, as ameaças se acirraram e o padre Salomão não teve mais sossego. Volta e meia é alvo de ameaças e abordagens violentas.


 


Águas contaminadas
Também por causa dos Chiquitano, o padre jesuíta Felício Fritsch é outro que figura na lista macabra. Ele trabalha com os índios de modo geral em Mato Grosso, num trabalho sem fronteiras. Iniciou com os Nambikwara, no Vale do Guaporé, e depois focou mais com os Kayabi, no rio dos Peixes. No ano passado foi levar duas pessoas da Pastoral da Criança Indígena à aldeia Santa Aparecida, no município de Vila Bela da Santíssima Trindade. A área da aldeia foi invadida por uma fazendeira e lá os índios Chiquitano vivem praticamente sitiados e sob constante ameaça. A visita do padre Felício foi interpretada pela fazendeira como uma organização de resistência e, quando almoçava com os caciques, a mulher chegou com pistoleiros e expulsou o jesuíta de lá. ''Dias depois, a polícia foi à fazenda, prendeu a fazendeira e apreendeu várias armas'', contou uma terceira fonte.


 


Mestre Mário Bordignon é religioso salesiano, que trabalha com os índios Bororo em Mato Grosso há quase 30 anos. Ajuda na implantação de projetos de agricultura e alternativas de produção. Atualmente ele desenvolve atividades nas aldeias para dotar as comunidades com infra-estrutura de saneamento básico, especialmente a captação de água potável. Como a maioria das comunidades fica ilhada por plantações de soja, os recursos naturais de água estão praticamente todos contaminados por agrotóxicos. O trabalho dele, junto com outros mestres salesianos, vai desde a perfuração de poços artesianos até a fabricação de bombas d'água. Nesses contatos permanentes com os Bororo, mestre Mário acompanha o drama das comunidades, sempre ameaçadas pelos interesses de fazendeiros e grileiros.


 


A situação mais grave é em Jarudore, distrito do município de Poxoréo, no Sudeste de Mato Grosso. Lá eles sofreram um processo violento de invasão de suas terras, até que 1980 não havia mais nenhum no local. Hoje a área se transformou em uma pequena vila com cerca de 3.000 pessoas. Em volta, algumas pequenas fazendas, mas também latifúndios formados ao longo dos anos, graças à invasão das terras indígenas. Era um total de 6.000 hectares, demarcados em 1912 pelo Marechal Rondon, tendo os morros de mesa como marcos naturais. Esses marcos começaram a ser desrespeitados pelo próprio governo de Mato Grosso, que, em 1945, iniciou a venda das terras dos Bororo para assentar colonos, vindos sobretudo do Nordeste. Foram loteados quase 2.000 hectares, restando 4.116 para os índios.


 


Mas a colonização apressou a invasão da área. Outros colonos apareceram e, junto com a ganância dos já instalados, mais terras foram sendo tomadas. Além da violência, os invasores corrompiam os índios com cachaça. A descoberta do garimpo na região acabou de vez com a reserva Bororo.


 


61 anos de injustiça
Desde então, o movimento pelo retorno dos índios a suas terras continuou. Inúmeras viagens a Brasília, ações na Justiça, assembléias. Quase tudo em vão. A Funai sempre engavetava tudo sobre Jarudore. Até que, em julho do ano passado, o Ministério Público Federal, por meio do procurador da República Mário Lúcio Avelar, entrou com uma ação para fazer a reintegração de posse da área e corrigir mais de seis décadas de injustiça. Diante dessa ação, um grupo Bororo formado por cerca de 300 pessoas, lideradas pela cacica, Maria Aparecida Tore Ekureudo, retornou para parte da área semanas depois.


 


Começou aí o alvoroço. Os invasores se mobilizaram temendo a perda das terras. Surgiram boatos e ameaças de morte. Até que, na véspera do Natal, o genro da cacique, João Osmar Lopes, sofre um atentado e desaparece. Sua caminhonete, com a qual trabalhava transportando leite, foi totalmente queimada. João Gaúcho, como é conhecido, foi reencontrado três dias depois com marcas de tortura e sem consciência.


 


O atentado teve claro propósito de intimidar os índios. Até hoje suas circunstâncias não estão totalmente esclarecidas. Alguns fazendeiros apontados como suspeitos do crime se apressaram a dizer que não tinham nada a ver com o atentado. Mas a morosidade da Polícia e da Justiça estimula a impunidade e dá mais coragem aos criminosos. Desta vez, o alvo é o mestre Mário. No dia 27 de dezembro, quando ainda não havia notícias do paradeiro de João Gaúcho, o religioso transitava pela avenida Fernando Corrêa e percebeu que estava sendo seguido. No semáforo próximo ao 9º BEC (Batalhão de Engenharia e Construção, do Exército) um veículo encostou bem do lado esquerdo dele. O carona chamou sua atenção e apontou o dedo, puxando-o em seguida simulando o disparo de um gatilho. Antes que ele esboçasse qualquer reação, o carro saiu em disparada.


 


Morte anunciada
O conjunto de violências que em 1987 culminou com a morte de Vicente Cañas também começou com ameaças. O irmão jesuíta era espanhol, nascido em Albacete, no dia 22 de outubro de 1939. Aos 22 anos, entrou para a Companhia de Jesus e logo pediu para ser enviado ao Brasil. Ao chegar em Mato Grosso, iniciou sua missão e trabalhou com vários povos indígenas. O trabalho com os Enawene Nawe teve início em 1974, quando estabeleceu o primeiro contato com esta etnia e passou a morar na aldeia com eles na margem do rio Iquê, afluente do Juruena. Não se sentia apenas um missionário, mas irmão dos próprios índios. Tanto que adquiriu alguns hábitos da etnia, como o corte de cabelo, os adornos e as pinturas. Trabalhava com todas as necessidades da comunidade, mas dava atenção especial à saúde. Com as constantes investidas dos madeireiros que invadiam suas terras para roubar madeira de lei, passou a denunciar os crimes e se tornou alvo de ameaças até que, no dia 06 de abril de 1987, foi assassinado a facadas. Seu corpo só foi encontrado 40 dias depois.


 


O julgamento dos mandantes e dos assassinos demoraria muito: 19 anos, seis meses e 18 dias depois. Dos denunciados, sentaram ao banco dos réus apenas o acusado de agenciador, Ronaldo Antônio Osmar, ex-delegado de polícia, e os acusados de pistolagem, José Vicente da Silva e Martinez Abadio da Silva. Os três foram absolvidos. Dos mandantes denunciados pelo Ministério Púbico, dois já haviam morrido – Pedro Chiquetti e Camilo Carlos Obici – e o terceiro, o fazendeiro Antonio Mascarenhas Junqueira, prescreveu pelo fato do réu ter mais de 75 anos.


 


Cobiça continua
Apesar da não-condenação dos denunciados, os missionários consideram o julgamento, em parte, vitorioso. ''Pelo menos houve o reconhecimento de que Vicente Cañas foi assassinado'', afirmou um dos colegas do irmão jesuíta. Como o corpo fora encontrado 40 dias depois, ficou difícil encontrar as provas de que ele tivesse sido assassinado. Havia marcas de facadas em seu abdômen, mas essa evidência foi confrontada com a versão de que a morte tinha sido natural durante os seis primeiros anos do processo que correu na Justiça estadual.


 


A morte de Vicente Cañas não foi em vão. Seu assassinato despertou as autoridades brasileiras e a comunidade internacional, freando o processo de invasão das terras Enawene Nawe que realizaram a autodemarcação de grande parte de suas terras tradicionais. A população Enawene Nawe também aumentou. Na época do primeiro contato, eles eram apenas 97 pessoas. Hoje são perto de 500. Graças ao trabalho de Cañas, além de outros missionários, foi possível conter as doenças que afetavam os índios, em especial as crianças. Mas as invasões e as ameaças pelos mesmos motivos que levaram à morte do irmão jesuíta continuam: a cobiça dos madeireiros.