Direitos humanos: Justiça em banho-maria na Argentina

A demora na Argentina em levar a julgamento oral os casos de violações dos direitos humanos cometidos pela ditadura militar instalou entre ativistas o fantasma do ocorrido com o ex-ditador chileno Augusto Pinochet, que morreu sem ser condenado.

Advogados de organizações defensoras dos direitos humanos e no Ministério Público concordaram, diante de consultas da IPS, em assinalar que existe um cenário político favorável para avançar nestes julgamentos e que, de fato, há processos que seguem de forma ordenada e eficiente até à instância oral e à posterior sentença definitiva.



Entretanto, também admitiram que no sistema judicial argentino persistem entraves burocráticos que sabem ser aproveitados tanto pela defesa dos acusados quanto por juizes que resistem a colocar no banco dos réus ex-hierarcas da última ditadura (1976-1983), ex-policiais ou civis relacionados com esse regime e ainda influentes. Dados do não-governamental Centro de Estudos Legais e Sociais (CELS) indicam que já há cerca de 1.400 acusados em todo o país desde a reabertura dos processos em junho de 2005, quando a Suprema Corte de Justiça declarou inconstitucional as leis de Ponto Final e Obediência Devida, que a partir da segunda parte da década de 80 afastou os repressores dos tribunais.



Existem cerca de 260 presos por violações dos direitos humanos, 70 deles em regime domiciliar devido à idade avançada, como o ex-ditador Jorge Videla. Outros cinco foram declarados incapazes por causa do mau estado de saúde, entre eles o ex-almirante Emilio Massera, 45 estão foragidos e 50 foram libertados ao vencerem os prazos legais de detenção. Também já morreu uma centena de envolvidos na sangrenta repressão ditatorial que, segundo organizações humanitárias, fez desaparecer cerca de 30 mil pessoas e assassinou ou manteve detidos em campos de concentração centenas de milhares. Entre os antigos chefes militares que morreram sem serem condenados está o ex-general Guillermo Suárez Mason.



Aos processos reabertos a partir da anulação das leis de anistia somaram-se outros iniciados nos anos 90, e tampouco com resolução final, como as demandas por subtração de menores e o megaprocesso pelo Plano Condor, a coordenação repressiva de ditaduras do Cone Sul. A fim de evitar “ir a reboque dos esforços das vítimas”, o Ministério Público criou em 2004 a chamada Unidade de Assistência para Causas por Violações dos Direitos Humanos durante o Terrorismo de Estado, e no ano passado pediu aos promotores para serem “extremamente cuidadosos para agilizar os processos”. Mas, o sistema responde com lentidão. “Há diversos fatores”, explicou à IPS Pablo Parenti, subdiretor dessa unidade.



“Há processos em que se prolonga em demasia o período de investigação e se demora para levar a julgamento, e outros que atrasam porque demora-se em resolver os múltiplos recursos que as partes apresentam”, acrescentou Parenti. O promotor considerou que desde esse ministério há apoio para avançar e nesse sentido destacou os progressos de alguns processos reabertos a partir da anulação das leis de impunidade, como o que julga a repressão na área do I Corpo de Exército, uma das causas emblemáticas porque corresponde a uma quantidade inumerável de vítimas.



“Neste caso se avança de forma ordenada e rápida para o julgamento oral, ou seja, entre este ano e o próximo haverá muitos julgamentos”, acrescentou o promotor. Por outro lado, admitiu que o processo conhecido como Esma (Escola de Mecânica da Armada), onde funcionou um centro ilegal de detenção, anda em marcha lenta. A advogada Carolina Varsky, do CELS, destacou que desde a anulação das leis de impunidade “o cenário é favorável ao julgamento”. Mas, reconheceu que até agora só houve dois integrantes do aparelho repressor ilegal julgados e condenados.



Trata-se do ex-policial Julio Simon, conhecido como Turco Julián, e o ex-comissário Miguel Etchecolatz, condenados em 2006. A estes dois casos emblemáticos restam pendentes processos penais por outra quantidade de vítimas. O próximo a ser julgado – provavelmente em março – será o padre Christian von Wernich, implicado em torturas e assassinatos. “Temos de acelerar os tempos porque os acusados vão morrer”, teme Varsky, dizendo que em algumas províncias, como Córdoba, Chaco, Mendoza, Salta ou Santiago del Estero a morosidade é ainda maior. Há processos paralisados ou que nem mesmo começaram.



Para esta advogada, titular do Programa Memória e Luta contra a Impunidade do Terrorismo de Estado do CELS, os atrasos ocorrem na Câmara Nacional de Cassação Penal da Suprema Corte de Justiça (máxima instância penal do país), nas Câmaras Federais e nos diversos tribunais de primeira instância. “Isto tem a ver com nosso sistema de procedimento penal. Não analiso em termos políticos, pelo contrário, vejo juizes decididos a avançar, sobretudo nos últimos anos, mas, por exemplo, na fase de instrução se poderia ir mais rápido e, entretanto, consome muitos anos em nosso sistema”, questionou Varsky.



Por sua vez, Alcira Rios, representante legal de integrantes da organização Avós da Praça de Maio, informou à IPS que “os advogados de direitos humanos pensam em fazer um pedido conjunto junto à Corte, porque cremos que é evidente que o obstáculo principal está no Tribunal de Cassação, onde são freados todos estes processos”. As causas mais demoradas são as abertas nos anos 90 contra os ex-chefes da ditadura e outros representantes de menor status. Naquele momento, organizações não-governamentais encontraram caminhos legais para avançar, apesar das leis de “ponto final”, de 1986, e de “obediência devida’, de 1987, e dos indultos a ditadores e altos oficiais decretados em 1990 pelo então presidente de centro-direita Carlos Menem (1989-1999).



Assim, em 1998 se conseguiu a prisão de Videla e outros repressores em um processo por subtração de menores, e a abertura de um processo pelo Plano Condor. Este último pode ser levado logo a julgamento, enquanto o primeiro ainda é uma incógnita. Ambos tramitam há mais de 10 anos. Em conversa com a IPS, Luciano Hazan, advogado da organização Avós da Praça de Maio, disse que houve processos contra apropriações de filhos de pessoas desaparecidas que derivaram em sentenças. Mas, a causa principal pelo que se determinou foi um “plano sistemático” para ficar com os filhos de seqüestrados, e o processo contra Videla continua parado.



O processo por este plano sistemático de apropriação de menores, em que estão envolvidos ex-altos chefes militares está em faze de terminar a etapa de investigação para ser levado a julgamento. Mas, o caso de Videla, que segue um código de processamento já substituído há quase 15 anos, está muito mais demorado. A demanda contra o primeiro ditador depois da queda do governo democrático em maço de 1976 começou antes de ser criado o sistema de julgamento oral, e então todo o processo era por escrito. De fato, o atraso permitiu que, pelo menos neste caso, Videla tivesse o beneficio de aguardar a condenação em liberdade.