Reflexões carnavalescas: quem foi que inventou o Brasil?

O diplomata e escritor Marcelo Otávio Dantas Loures da Costa julga arbitrária  a noção de que o povo brasileiro seja jovem. “A  suposta juventude do Brasil repousa no falso pressuposto de que as nações surgem isentas de passado”, assevera no art

Em seu demonstrativo, da Costa incursiona pelos ritos agrários de um paganismo imemorial, na noite dos tempos européia, pela antiguidade grega e romana, pelos entrudos portugueses dos séculos 16 e 17.  Sustenta com eles “a ancestralidade da festa símbolo da cultura brasileira”.



“Nossa pátria surgiu, assim, como resultado de mesclas, sincretismos e, por que não dizer, inevitáveis atavismos. As crenças, manias e instituições que hoje nos assolam reportam, todas elas, a padrões forjados em um passado distante”, sentencia.



Poxa, nem o Carnaval!



Senti-me arrasado: por desdita, “na barriga da miséria nasci brasileiro”, como o personagem do partido alto de Chico Buarque em 1972, que a censura ditatorial da época transmudou em “batuqueiro”. Poxa, nem o Carnaval!



Mas em seguida um pequeno exercício de lógica formal acendeu-me uma nesga de esperança. Afinal, que fim levou o carnaval fecundativo da europa pré-homérica? E o dionisíaco carnaval grego? E o romano (não vale usar o de Veneza…)? Onde foi parar o entrudo? Se pertence a eles o copyright carnavalesco, onde estão que não nos trucidam com seus enredos e trios elétricos, sambódromos, frevos e maracatus?



O século do frevo e seus irmãos



Marcelo Otávio Dantas Loures da Costa, um branco retinto a julgar pelos prenomes e sobrenomes, silencia por completo sobre raízes negras do Carnaval brasileiro (embora se refira en passant aos “que antes de Cabral habitavam nossas terras”). Embora carioca, serviu como diplomata em Washington e Cidade do México, o que talvez não lhe tenha permitido subir à Mangueira, ou à Portela, conhecer as matrizes baiana e pernambucana da  festa momesca, o esforçado e pujante Carnaval paulistano, ou os outros 260 municípios brasileiros que realizam desfiles de escolas de samba.



Quem meditar sobre o que acontece por estes dias, em tais paragens escuras e pobres, constatará que há sim, novidades. As “crenças, manias e instituições que hoje nos assolam”, embora pertencentes como todas ao abigarrado cadinho das criações da raça humana, nasceram aqui, sim senhor. E ainda que ainda não sejam muitos os que se debruçam sobre estas gêneses, é possível arriscar até uma data aproximada de nascimento, por volta de um século atrás.



O Carnaval recifense-olindense comemorou no dia 9 último, com orgulho e pompa, o centenário do frevo. É claro que um ritmo tão imenso e vertiginoso, com mais de cem passos catalogados, dificilmente terá nascido pronto em um dia único, como Palas Atena da cabeça de Zeus. Mas por volta dessa data, enquanto os capoeiristas pernambucanos experimentavam suas primeiras acrobacias, os  estivadores as tias baianas do Rio ajudavam a inventar o que viria a ser o Carnaval carioca.



Cem carnavais e cem reinvenções mais tarde, com licença de Veneza, Torres Vedras e Cochabamba, Munique e Nova Orleans, é sim o Carnaval brasileiro que chega com mais gás ao século 21. Inclusive – por que não? – para turista ver.



Só somos originais na ruindade?



Mas voltemos a da Costa. Após tentar convencer-nos de que apenas importamos uma festa grega, eis que o artigo, num cavalo-de-pau, revela o seu real objetivo e admite enfim alguma originalidade na folia tupiniquim.



“Nosso Carnaval não é mais aquele!”, exclama, pois, “de uns tempos para cá, o que era exceção se tornou regra, e Momo passou a reinar o ano inteiro”.  E conclui: “Já imaginou o leitor se, durante o Carnaval, pudéssemos ter líderes capazes, políticos honestos e burocratas competentes? Se, ao menos por quatro dias, a Justiça funcionasse, a polícia protegesse e os corruptos fossem punidos? Seria uma grande catarse cívica. O maior espetáculo da Terra.”



Atento, o editor da Folha puxou para a chamada de capa justamente este momento final e apoteótico. Moral da história: só somos originais na ruindade.



Nossas coisas se inventam aqui embaixo



Depois, então, que elegemos e reelegemos Lula, recrudesceram na mídia dominante as pensatas com este bordão. Antes, ao menos, o presidente da República era fluente em inglês, e vituperava contra nossa natureza caipira. Agora é que estamos mesmo perdidos, pois se festeja o São João até no Palácio da Alvorada…



Não é àtoa que as coisas da brasilidade quase nunca vêm de cima, do vértice dourado e agudo de nossa pirâmide social. “O samba, a prontidão e outras bossas”, nossas coisas, coisas nossas, se inventam aqui embaixo. Estão se inventando agora mesmo, brasileiramente aos trancos e barrancos, como diria Darcy Ribeiro, o antropólogo do povo novo que Marcelo Otávio Dantas Loures da Costa desconhece.