Carlos Rogério (CSC): “A histeria feudal contra o MST”

Confira o artigo de Carlos Rogério Carvalho Nunes, sobre as reações conservadoras às ações do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no estado de São Paulo.

A histeria feudal contra o MST


 


Por Carlos Rogério Carvalho Nunes*


 


A recente ação dos trabalhadores sem-terra no Oeste paulista abriu outra temporada de ataques conservadores a uma das questões mais fundamentais para o país: a luta por uma efetiva reforma agrária. Cresce na grande mídia o clamor por atitudes truculentas contra esses trabalhadores – idéia que o governo Lula se recusa a endossar e por isso tem sofrido pesados ataques. É compreensível que a direita tenha dificuldades de aceitar essa nova forma de lidar com os movimentos sociais. Desde os primórdios brasileiros, a elite sempre andou na direção oposta às ações populares.


 


Os vínculos ideológicos e afetivos com o Estado autoritário são fortes. Recentemente, FHC, na sua retomada da ofensiva contra o governo Lula, usou e abusou de frases bem ao gosto desta elite – fundadas basicamente na falsa imagem de um presidente fraco, indeciso e inseguro. Não está no escopo ideológico da direita um projeto efetivo de reforma agrária – da qual o capitalismo brasileiro não precisa ter medo, como costuma dizer o vice-presidente da República, José Alencar. Não existem explicações fora da ideologia patrimonialista das oligarquias republicanas para a manutenção no país de uma estrutura no campo que empurra latifundiários e agricultores sem-terra para confrontos pouco civilizados.


 


Campanha sistemática


 


Essa atitude é o retrato de um país onde 50 mil latifundiários detêm 165 milhões de hectares de terra, enquanto 3 milhões de pequenos produtores detêm apenas 10 milhões de hectares. Dessa forma, 50% das fazendas no Brasil – todas com menos de 10 hectares – ocupam 3% das terras agricultáveis. Em contrapartida, 1% das fazendas ocupa 50% do solo nacional destinado à agricultura. Estima-se que cada família assentada custe ao governo 15 mil dólares. De outubro de 1995 a maio de 1996, para se ter uma idéia, o governo FHC liberou 12,1 bilhões de dólares ao Proer, salvando bancos mal administrados e com operações obscuras em carteira. Esse valor seria suficiente para assentar 800 mil famílias.


 


No campo ideológico, os conservadores lutam para criar um ambiente hostil à idéia da reforma agrária como uma das prioridades nacionais. Daí a sistemática campanha contra o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) – um movimento que conseguiu mostrar que o objetivo da reforma agrária não deve ser necessariamente o de aumentar a produção agrícola, mas sim o de criar meios de sobrevivência para os milhares de brasileiros que buscam o seu sustento no campo. Ou seja: conseguiu fazer uma grande parcela da população perceber que a questão fundiária é uma das principais faces de nossa tragédia social. O cerne do problema é, por conseguinte, canalizar de maneira construtiva a ampla compreensão que hoje existe a respeito da necessidade da reforma agrária.


Fronteiras latifundiárias


 


O grande trunfo do MST, que o torna intragável à direita, é a crescente aceitação dessa tese. Mais do que isso: a luta dos trabalhadores sem-terra é, a rigor, uma luta histórica. A abolição da escravatura não eliminou a estrutura oligárquica: antes o dono da terra tinha escravos, agora tinha vassalos. Tampouco a revolução de 30 e a industrialização do país mudaram essa ordem. A condição de senhor feudal não se alterou e segue solidamente instalada no campo como ideologia dominante. Os coronéis estão representados em todas as esferas da política nacional e seus jagunços continuam atirando em trabalhadores que lutam por um pedaço de chão.


 


Nos anos 70 e 80, a ditadura militar empurrou muitas vítimas da concentração de terra para a Amazônia. Junto com elas foram muitos aventureiros que viram nesse gesto dos governos militares a oportunidade de expandir suas fronteiras latifundiárias para o norte do país – cortando árvores e destruindo ecossistemas mais antigos do que a própria humanidade para plantar soja e criar gado. Muitos dos que foram para lá atrás de terra acabaram constatando logo que aquele solo não se presta à agricultura e sobrevivem do extrativismo predatório da floresta, derrubando árvores milenares para garantir pequenas plantações ou ganhando uma mixaria para jogar mercúrio no rio em busca de minerais preciosos.


 


Posicionamento nacional


 


Esse quadro camponês paupérrimo, enfim, poderia ser radicalmente alterado ao custo de umas poucas leis e diretrizes administrativas. Não faz sentido um país com a extensão do Brasil ostentar um cenário de Idade Média em pleno século 21. Evidentemente, para essa alteração seria necessário que o governo promovesse uma inflexão no campo. É fundamental que o Brasil democrático vá até os latifúndios e troque de lugar com os muitos fora-da-lei que hoje dominam vastas regiões improdutivas. Aos aventureiros sem escrúpulos, que se estabeleceram em terras devolutas e se sentem na casa da mãe Joana, caberia aplicar uma receita básica: rua, lei e cadeia.


 


Mas nada se fará enquanto essa idéia não for um posicionamento nacional claro e indiscutível. Esse é o problema. Para essa questão, é necessário considerar que tão importante quanto a vontade política do governo para alterar esse cenário – que indiscutivelmente existe – é a visão dominante que o Brasil tem sobre o campo. A ideologia feudal sobre a nossa estrutura fundiária vê atitudes como as do MST como crimes. Para ela, uma organização que abarca um grande número de pessoas com um enorme potencial de luta num ponto neurálgico da vida nacional é uma inconveniência intolerável.


 


Se há algum radicalismo nas ações dos trabalhadores ele é mero contraponto ao autoritarismo histórico dessa oligarquia. Por nunca ter em seu projeto o conceito de nação, a elite brasileira abriu espaço, com sua conduta de exploração e acúmulo, para ações radicalizadas. Os governos passados, tradicionalmente vinculados ao poder econômico, não funcionavam como elemento de equilíbrio nessa dicotomia e contribuíam para o acirramento das posturas. No governo Lula, o que se espera é uma atitude que traga para o debate nacional a necessidade de se equalizar essa dicotomia.


 


Oceano de solos inúteis


 


O desafio é gigante. Afinal, num dos pratos da balança estão os proprietários – e seus apoios ideológicos – de algo próximo a 150 milhões de hectares de terras improdutivas, um oceano de solos inúteis que equivale a dois Chiles ou a quinze Coréias, dispostos a defender seus feudos com balas e chantagens – inclusive no Congresso Nacional, ameaçando votações de interesse do governo. No outro prato estão aqueles que viram na eleição de Lula a esperança de termos no país um desenvolvimento nacional integrado, no qual ninguém será esquecido.


 


 


Num país como o Brasil, em que o problema agrário é tão agudo, onde há uma enorme massa de trabalhadores necessitada de terra e onde há também um amplo mercado potencial, não é possível processar o desenvolvimento sem que este atinja seriamente o campo. É possível que essa atitude não ocorra tão facilmente, pelo menos em um primeiro momento. A lei, no Brasil, sempre esteve a serviço de quem detém o poder. O Brasil é ainda o país da tortura medieval e dos assassinatos impunes para quem não tem onde se socorrer. Como resultado, está disseminada pela sociedade a noção de que a lei não é igual para todos, de que a Justiça não é justa. Ou seja: nossas tradições jogam contra nós. Mas é preciso enfrentá-las.


 


* Carlos Rogério Carvalho Nunes é secretário de Políticas Sociais da CUT Nacional e membro da Corrente Sindical Classista (CUT)