''Fidel está vivo'': Detalhes e impactos da célebre entrevista

Confira a segunda e última parte da série ''Fidel está vivo'', sobre a histórica entrevista de Fidel Castro ao The New York Times, há precisos 50 anos. Como o então guerrilheiro cubano recebeu o repórter Hebert Matthews? Qual foi o teor da ent

Depois de contar, no sábado, os bastidores do encontro entre Fidel e Matthews, o Vermelho revela hoje (25/02) detalhes da entrevista e sua repercussão. O texto é de José Antonio Fulgueiras e faz parte do livro Marabuzal, em edição. Acompanhe.


 



Fidel está vivo


 


Por José Antonio Fulgueiras


 


Matthews, como jornalista experiente, havia pesquisado durante sua estada em Havana sobre a situação em Cuba, a repressão a que era submetido o povo e conhecia, também, muitos traços pessoais de Fidel e alguns dados de sua história revolucionária estudantil e sua participação, como líder, no ataque ao quartel Moncada, em Santiago de Cuba.


 


Apesar disso, ficou impressionado com a juventude de Fidel, mas, à medida que o ouvia, chegava à conclusão de que o chefe guerrilheiro era um homem invencível.


 


Fidel contou-lhe a odisséia do desembarque, quando foram apreendidos e assassinados muitos expedicionários, mas a tropa conseguiu reagrupar-se, consolidar-se e desferir-lhe nos dois meses de levantamento, várias derrotas ao exército de Batista.


 


''Há setenta e nove dias que estamos lutando – expressou Fidel – e somos mais fortes do que nunca. Os soldados estão combatendo mal. Sua moral é baixa e a nossa não pode estar mais alta. Provocamos muitas baixas a eles, mas quando os prendemos, nunca os fuzilamos. Interrogamo-los, tratamo-los bem, ficamos com suas armas e seus equipamentos, e os libertamos.''


 


E mais para frente, acrescentou:


 


''O povo cubano ouve pela rádio todas as notícias referentes à Argélia, mas não ouve nem lê uma só palavra a respeito de nós, graças à censura. O senhor será o primeiro a falar-lhe de nós. Temos seguidores na Ilha inteira. Os melhores elementos, especialmente os jovens, são a nosso favor. O povo cubano é capaz de suportar qualquer coisa, menos a opressão.''


 


Fidel destacou ao jornalista que a ditadura estava empregando contra o povo armas munidas pelos EUA e acrescentou:


 


''Batista tem 3 mil homens com armas perseguindo-nos. Eu não lhe direi quantos homens tenho, por razões óbvias. O exército opera em colunas de 200 homens. Nós, em grupos de 10 a 40. É uma batalha contra o tempo, e o tempo está ao nosso favor.


 


Enquanto decorria a entrevista, René Rodríguez, com uma máquina fotográfica antiga que trouxe de Manzanillo, se graduava como correspondente de guerra. Com muito afã, focalizava o entrevistado e o entrevistador e apertava o obturador, enquanto Matthews, com traços ágeis e pouco legíveis, fazia apontamentos num caderno com capa preta.


 


Frank País, o grande líder clandestino, um pouco afastado, aproveitava o tempo dando manutenção às armas dos rebeldes, ação que se gravaria na memória de Che Guevara, que escreveu depois em seu diário:


 


''Não presenciei a entrevista, mas segundo me contou Fidel, o homem mostrou-se amigável e não fez perguntas capciosas. Perguntou a Fidel se ele era antiimperialista; respondendo-lhe que sim, que ele era, no sentido de almejar livrar sua pátria das cadeias econômicas, mas não de odiar os Estados Unidos e seu povo. Fidel queixou-se da ajuda militar prestada a Batista, fazendo com que ele visse quão ridículo era pretender que essas armas eram para a defesa do continente, quando não podiam acabar com um grupo de rebeldes na Serra Maestra.''


 


O diálogo entre Fidel e Matthews se caracterizou pela sutileza do cubano, onde o humor e a originalidade apareciam nos momentos mais relevantes e mais difíceis. A tropa de rebeldes tentava, de qualquer jeito, impressionar o repórter, sem cair em alardes nem mentiras que pusessem em dúvida a veracidade, a existência real e a força da guerrilha.


 


Por isso, desde o início, Fidel deu a ordem de manter uma atmosfera marcial diante do repórter norte-americano e dar uma imagem de grupo que simulasse ser mais numeroso do que era realmente. Enquanto decorrria a entrevista, os rebeldes entrevam e saíam constantemente do acampamento, aparentando um maior número de pessoas. Isso correspondia à insinuação de Almeida a respeito da existência de vários acampamentos no entorno.


 


Alguns guerrilheiros, como Manuel Fajardo, passavam ao lado de Matthews, impedindo que ele reparasse em sua camisa completamente rasgada. Outro momento engenhoso, foi quando o então capitão Raúl Castro Ruz, após a chegada do combatente Luis Crespo, informou Fidel:


 


 – Comandante, chegou o enlace da coluna 2!


 


Fidel ao reparar na tramóia de Raúl, respondeu-lhe:


 


– Diga-lhe que espere que eu terminaecom o repórter.


 


A famosa entrevista durou ao redor de três horas. Matthews, visivelmente satisfeito, pediu para Fidel lhe autografar a agenda e assim conferir maior autenticidade aos dados obtidos. Fidel acedeu ao pedido e acrescentou a data do encontro histórico nesse dia.


 


A certa distância, Guerra Matos viu feliz a despedida do chefe guerrilheiro e do jornalista. Agora tinha uma ordem ainda mais complexa a executar: devia voltar a Manzanillo com Matthews em pleno dia. Javier Pazos o acompanharia no regresso, ao qual se somaria o jovem camponês Reynerio Márquez, que os dirigiria à casa de uma filha de Epifanio, ao lado do caminho do Jíbaro.


 


Interceptados novamente por uma patrulha do exército


 


Guerrita contou:


 


''Depois da entrevista, mandaram-nos passar para cumprimentar Fidel. O comandante-em-chefe mostrou interesse em saber como foi a viagem do repórter, qual caminho tomaram, quais medidas de precaução foram tomadas e insistiu em que tinha que ser mais cauteloso ao voltar, a fim de impedir que acontecesse alguma coisa ao jornalista.


 


''Recordei a Fidel que o conheci dez anos atrás, quando dos fatos da campanha de La Demajagua.'' Guerrita revelou que o Fidel da Serra Maestra era o mesmo homem convicto e convincente, porém ainda mais inspirado. Gesticulava e punha otimismo em cada uma de suas palavras, que eram capazes de alentar a pessoa mais desanimada.


 


''Fui para Cayo Espino, para a quinta de meu pai a fim de buscar o carro que ali estava. Voltei e recolhi o norte-americano na casa de Epifanio e às 13h estávamos já em Cayo Espino.


 


''Sirva o almoço ao jornalista e que ele goste muito. O norte-americano tem que sair daqui com barriga cheia e coração contente', disse Guerrita com tom de brincadeira a sua mãe e seu pai, camponeses admiradores e colaboradores das forças do Movimento 26 de Julho.''


 


Enquanto a família de Guerra Matos aprimorava a refeição cubana típica para satisfazer o visitante, o repórter apenas mastigou um pedacinho de frango e, com a maior cortesia do mundo, proferiu, para supresa de todos, cinco palavras que fizeram mudar completamente o itinerário:


 


Please, take me to Manzanillo. (Por favor, me leva a Manzanillo).


 


Guerrita não percebeu nesse momento que o pensamento do jornalista estava muito longe de seu estômago, e sua maior fome se concentrava na notícia que tinha gravada em sua cabeça e nos papéis que guardava zelosamente nos bolsos da camisa.


 


Uma patrulha do exército interceptou-os novamente na rodovia, mas Guerrita conseguiu desinformá-los outra vez. Ao redor das 17h, chegaram à casa de Saumell, onde sua esposa Nancie o esperava sentada na sala.


 


No limiar da porta, com breves palavras, Matthews propôs a Nancie partir imediatamente para Santiago de Cuba. Subiram apressados no carro que os levaria para o lugar. Viajaram de Santiago de Cuba para Havana num avião e no dia seguinte, o casal de norte-americanos foi para Nova Iorque.


 


Ao embarcar no avião, Nancie parecia mais gordinha que ao chegar. Será que teria abandonado seu regime, por causa da atraente comida cubana? Nada está mais longe disso. A esperta mulher havia colocado sob a roupa os papéis com todos os apontamentos que fez Matthews de sua entrevista histórica com Fidel. Enganaram, com discreta artimanha, os inspetores da alfândega e a rede dos ferozes membros do Sistema de Inteligência Militar de Batista.


 


Guerrita, por sua parte, continuou cumprindo suas tarefas, ora como mensageiro ora no translado de combatentes para a Serra Maestra. No mesmo dia em que Matthews abandonou Manzanillo, ele se encarregou de levar para a quinta de Epifanio Díaz mais três expedicionários do iate Granma, dispersos durante o desembarque.


 


Dias depois da partida do repórter para os Estados Unidos, Guerrita examinava diariamente os jornais à espera de um artigo escrito por Matthews. E no domingo, 24 de fevereiro de 1957, reparou que nas manchetes do El Diario de la Marina apareceu este título de grande impacto:


 


O impacto daquela entrevista foi impressionante


 


Fidel está vivo!


 


E mais abaixo, o seguinte sumário:


 


Entrevistado por Matthews, do The New York Times, na Serra.


 


''Rebelde cubano é visitado em seu esconderijo'', aparecia depois na cabeça da página. E depois, a foto do chefe guerrilheiro com um fuzil de mira telescópica e a cópia fotostática do autógrafo que Fidel assinou na agenda do jornalista.


 


Guerrita, sentado no volante de seu jipe, começou a ler minuciosamente o artigo escrito por Matthews no The New York Times, que foi reinserido pelo El Diario de la Marina em suas páginas.


 


Matthews começava sua reportagem com esta afirmação:


 


''Fidel Castro, o chefe da juventude cubana, está vivo e está combatendo fortemente e com sucesso nos inóspitos e quase impenetráveis bosques da Serra Maestra, no extremo sul da Ilha.


 


''O presidente Fulgencio Batista mantém seu exército nessa região, mas os militares estão travando uma batalha, até agora, perdida para destruir o inimigo mais perigoso, ao qual o general Batista teve que enfrentar em sua longa e difícil carreira como líder e ditador cubano.


 


''Esta é a primeira notícia certa de que Fidel Castro ainda está vivo e em Cuba. Ninguém relacionado com o mundo exterior, e ainda menos com a imprensa, viu o senhor Castro, exceto este repórter. Ninguém em Havana, inclusive na Embaixada dos Estados Unidos, com todos seus recursos para a recopilação de informação, saberá até ser publicado este artigo que Fidel Castro está realmente na Serra Maestra.''


 


Matthews não escondeu neste artigo sua repulsa pelo regime de Fulgencio Batista e manifestou categoricamente: ''Fidel Castro e seu Movimento 26 de Julho são o símbolo inflamado da oposição ao regime''.


 


Mais adiante argumentou: ''Para facilitar meu acesso à Serra Maestra e meu encontro com Fidel Castro, dezenas de homens e mulheres em Havana e na província de Oriente correram verdadeiramente um grande perigo''.


 


Guerrita pensou que aquele homem de bonê e cachimba estava referindo-se a ele, e que em nenhum momento transpareceu que sabia do grande perigo que corriam ao levá-lo para se encontrar com Fidel. Por isso, quando releu a linha: ''um grande perigo'', cresceu sua admiração pelo repórter veterano.


 


Continuou lendo e deparou que Matthews fazia um esboço biográfico de Fidel desde o ataque ao quartel Moncada até a expedição do iate Granma. Depois, referiu-se às diversas versões em torno da provável morte de Fidel, que desmentiu taxativamente. A seguir, informou de sua entrevista com Fidel e concluiu com uma breve referência a sua saída para Nova Iorque.


 


Dias depois, Guerrita deleitou-se novamente com mais dois artigos de Matthews, em que examinava a situação atual de Cuba.


 


O governo de Batista não teve outra alternativa que suspender a censura da imprensa. Ao que parece, tinha reconsiderado isso a partir da publicação dos artigos de Matthews, uma vez que estes poderiam ser aproveitados pela imprensa internacional para causar um grande escândalo e pôr em ridículo seu regime.


 


Por isso, os principais órgãos de imprensa de Cuba reproduziram os artigos de Matthews, ao passo que o ministro da Defesa, Santiago Verdeja, emitia algumas declarações em que qualificava as notícias de Matthews como os capítulos de um romance fantástico.


 


''O senhor Matthews não se entrevistou com o tal insurgente'', ressaltava.


 


O porta-voz governista impugnava a autenticidade da foto de Fidel e fundamentava sua dúvida com estas palavras:


 


''Parece ingênuo que, apesar de ter tido a oportunidade de se embrenhar naquelas montanhas e ter realizado a entrevista, não se retratasse com ele para confirmá-lo.''


 


Guerrita sabia que René lhe tinha tirado algumas fotos a Matthews e a Fidel quando conversavam na Serra Maestra. Talvez, pensou, os negativos se tivessem arruinado ou não tivessem a melhor qualidade para serem visíveis nas páginas de um jornal. Lembrou que Frank subiu também com uma máquina fotográfica, mas não se lembra dele tirando fotografias.


 


O regime batistiano tentava por todos os meios negar a veracidade da entrevista de Matthews com Fidel, a qual se espalhava por toda a Ilha. Aos depoimentos de Verdeja somaram-se os do chefe militar da província de Oriente, Martín Díaz Tamayo, que declarou à imprensa cubana: ''É absolutamente impossível cruzar as linhas onde há tropas. A entrevista é história''.


 


Em 28 de fevereiro, como um facão no pescoço dos sicários de Batista, El Diario de la Marina mostrava, tirada do The New York Times, na capa a foto esperada em que apareciam Matthews e Fidel dialogando. A foto instantânea, que à velocidade da luz percorreu o mundo, mostrava à esquerda o repórter fazendo apontamentos. À direita, de perfil, o comandante-em-chefe Fidel Castro, com seu boné verde-olivo e sua barba de guerrilheiro, acendendo um charuto cubano, cujas chamas aclaravam as pupilas esperançosas das camadas mais humildes do povo.


 


Guerrita matos tirou seus óculos e enxugou-os com a ponta da camisa. Depois, pô-los novamente para poder apreciar com mais nitidez a foto tirada por seu companheiro René Rodríguez. Então mostrou um leve sorriso, arrancou o carro e partiu às pressas para a Serra Maestra.


 


Leia também a primeira parte da série ''Fidel está vivo'': Os 50 anos de uma entrevista legendária