“Batismo de Sangue”: do livro de Frei Betto para o cinema

A mão pesou na reconstituição histórica. A direção previsível com forte pegada pseudo-épica esvazia um texto original rico em ação e contraste. A impressão que fica é de que tudo quis aparecer demais.


Por Silas Martí

O delegado Fleury do Dops prepara um café forte enquanto um jovem fraco agoniza amarrado no chão. O líquido preto na xícara contrasta com a pele branca do jovem torturado. A cena de Batismo de Sangue, filme de Helvécio Ratton, que estreou nos cinemas na sexta (13) resume o maniqueísmo que governa toda a obra. O preto e o branco anulam toda sutileza e minimizam o drama da ditadura ao rigor formal de um roteiro ingênuo como cartilha escolar.


 


Baseado no livro homônimo que rendeu a frei Betto o prêmio Jabuti em 1985, o filme de Ratton falha ao traduzir para as telas a história do envolvimento de frades dominicanos na luta contra o regime militar ao lado de Carlos Marighella e a Ação Libertadora Nacional. Apesar do carisma e talento de Caio Blat, Daniel de Oliveira e do estreante Odilon Esteves, a trama se arrasta engessada, endurecida por diálogos repetitivos e inverossímeis, cheios de frases de efeito.


 


Balizado por marcos históricos da década de 60, como a chegada do homem à Lua e a iminência do milésimo gol de Pelé, o filme não perde nunca o verniz amanhecido de livro de história. Abre com o suicídio de frei Tito, um dos líderes do braço religioso da resistência e depois volta no tempo para mostrar os detalhes da história. Frei Betto é jornalista e acaba tendo de fugir para o sul do país. Os freis Ivo e Fernando são presos e torturados.


 


O próprio diretor atuou na resistência à ditadura e tomou por base os relatos de um homem que protagonizou as situações representadas na tela. Talvez faltasse maior distanciamento para tornar mais humano o retrato do indizível, driblar os recalques da memória.


 


Caricatura


 


Merece elogios a escolha de um elenco jovem e os atores não fazem feio. O problema é de uma rigidez que vem de fora, uma linearidade exagerada que afoga os dramas e achata os personagens numa massa amorfa de sentimentos e frases padrão. O texto não convence e o resultado esbarra na caricatura de um momento sombrio da história do país, cujo terror nunca foi posto em dúvida.


 


O formalismo hiperdidático cede apenas nas cenas de tortura. Ratton não poupa detalhes dos choques elétricos, surras e queimaduras aplicados na tentativa de arrancar confissões. São os melhores momentos do filme porque têm a carga dramática justa, despojada da métrica historicista. Dá para imaginar a dor sentida na pele e os gritos extravasam os limites da projeção.


 


Mas é tudo muito breve. Depois das torturas, a trama volta ao marasmo pegajoso de cenas que se arrastam sem sentido, clichês cansados e um texto que não empolga. Os momentos na prisão acabam lembrando a passagem por uma colônia de férias. A irmã de frei Tito, vivida por Marcélia Cartaxo, é um protótipo ofensivo de nordestino e a trilha sonora mergulha o filme na atmosfera de uma missa enfadonha.


 


A mão pesou na reconstituição histórica. A direção previsível com forte pegada pseudo-épica esvazia um texto original rico em ação e contraste. A impressão que fica é de que tudo quis aparecer demais. A maquiagem é pesada e desnecessária para fatos da História que dispensam molduras e retoques. É sem dúvida um batismo doloroso, em que tudo ficou pesado demais e humano de menos.