Em guerra contra Silvio Santos, Zé Celso saúda Lula e Chávez

Por Pedro Alexandre Sanches (Carta Capital)
Uma mesma peça teatral está em cartaz há 27 anos ininterruptos no Bexiga, centro de São Paulo. É encenada sob a liderança de Zé Celso Martinez Corrêa, mas conta com um parceiro inusitado: Silvio Sant

De um lado, Zé Celso e o Grupo Oficina interpretam o papel heróico de defensores do espaço de resistência cultural plantado na rua Jaceguai (e considerado patrimônio histórico desde 1983, quando foi tombado). Ao redor se esparramam os antagonistas da trama: o sorridente Silvio, o Teatro Imprensa, o Baú da Felicidade e o Grupo Silvio Santos, “vilões” que detêm o controle de todo o resto do quarteirão, onde pretendem erigir o Shopping Bela Vista Festival Center.


 


“É uma peça de teatro”, compreende Zé Celso, que acaba de completar 70 anos e se prepara para celebrar, no ano que vem, os 50 anos do Grupo Oficina. “É absolutamente cênica, metaforiza a polarização do mundo contemporâneo. Do outro lado está o capital financeiro, representado por um ator talentoso, um grande homem de vídeo, um grande artista, que transforma até o nome dele, Santos, que é muito bonito, em 'SS', que você poderia chamar de Grupo Suástica Suástica, porque o capital financeiro hoje é nazista.”


 


Peça teatral, sim, mas a partir do enredo um observador de fora pode detectar lances de reality show ou de telenovela do SBT. Uma mistura de drama shakespeariano e desenho animado de Tom & Jerry se desenrola, por exemplo, nos fundos do teatro. De acordo com o projeto, de 1983, dos arquitetos Lina Bo Bardi e Edson Elito, a parede dos fundos deveria abrir acesso do Bexiga ao Vale do Anhangabaú, pela rua Japurá.


 


A pessoa x o grupo


 


Há anos, o grupo de Zé Celso abre incansáveis buracos na parede que levaria ao que agora chamam de “Anhangabaú da Felicidade”. Há anos, o Grupo SS manda cobri-los com concreto, um por um.


 


Recentemente, foram utilizados na operação tapa-buraco os escombros de uma sinagoga vizinha demolida pelo Grupo SS. Uma estrela-de-davi ajudava a compor os entulhos dentro do teatro, e ao observador externo ficava difícil crer que não fosse mais um recurso cênico de Zé Celso.


 


Sua reivindicação atual é de que seja traçada uma área de preservação no entorno do patrimônio tombado. Episódio vitorioso foi o de 16 de janeiro deste ano, quando uma liminar obtida pelo Oficina impediu o início das obras do shopping.


 


Nos sonhos do diretor teatral, o projeto de preservação abrange transformar o estacionamento ao lado num teatro de estádio. Por enquanto, o espaço é compartilhado: de dia, abriga as vans do Baú da Felicidade; à noite, hospeda os carros de freqüentadores dos teatros Oficina e Imprensa.


 


Outro momento teatral e folhetinesco aconteceu em 18 de abril de 2004, quando Silvio Santos entrou pela primeira vez no espaço do Teatro Oficina. A visita foi intermediada pelo senador Eduardo Suplicy (PT-SP) e pelo psicanalista Contardo Calligaris, na tentativa de selar a paz entre as duas partes.


 


Zé Celso avalia o encontro: “Separo o Grupo SS da pessoa do Silvio Santos, que eu conheci e que se encantou com o projeto, ficou uma hora e meia conversando conosco. Ele entendeu o projeto, disse que sabe que em Nova York existe uma igreja tombada em cima da qual passa uma ponte de cimento”. Mas, três anos depois, a trégua ainda não resultou em acordo definitivo de paz.


 


Censura?


 


No ano passado, o Oficina concluiu o ciclo de adaptação de Os Sertões, de Euclides da Cunha, transmutado em cinco espetáculos de cerca de cinco horas de duração cada. Para o diretor, que interpreta Antônio Conselheiro na releitura do levante de Canudos, a saga de Os Sertões transpõe para o palco a batalha da “vida real” contra o futuro shopping (ou “Carandiru de luxo”, como ele define os shopping centers).


 


Zé Celso admite a obsessão por Silvio Santos, ou melhor, pelo que batizou de Grupo Suástica Suástica e diz ir muito além dos domínios do homem do Baú. Ele vê ramificações do SS no Vaticano, na Rede Globo, nos governos, na mídia dominante, nas corporações mundiais.


 


“Muita gente no Brasil vive de cabeça feita pela classe média alta, de acordo com os valores dela. Morrem de pavor, você é um errado se não está na Globo. Para eles é o inferno, e no entanto é uma maravilha não estar lá”, diz.


 


Lembra um encontro de que participou, com atores globais e com a executiva Marluce Dias da Silva, por conta de uma campanha da casa em prol do teatro. “Falei do símbolo da Globo, que é a família Marinho no centro do mundo. Disse 'vocês querem fazer o mundo girar em torno de vocês, e isso é um símbolo superado'.” Conta que uma atriz da Globo o interpelou por ele ter tentado uma aproximação mais íntima de Marluce: “Você não pode fazer isso, ela não é igual a nós”. E reage: “É claro que ela é igual a nós, e foi muito simpática”.


 


Mesmo assim, ele reclama seguidas vezes da “censura” a que acha que a mídia submete o Oficina, notadamente em respeito ao caso Silvio Santos. “Todas as reportagens sobre meus 70 anos cortaram tudo que fosse referência a isso. Todas cortaram, desde a Globo, por razões corporativas que posso compreender, até o Canal Universitário.”


 


Tem reclamação parecida em relação aos jornais paulistas. No ano passado, fez campanha publicitária para o Estado, e acredita que desde então vem sendo preterido pela Folha (mesmo com toda a repercussão que o jornal deu ao encontro com Silvio).


 


“Caí das nuvens, jamais imaginaria isso. Brincar de 'ão' no Estadão para mim não quer dizer nada, mas as pessoas me diziam que eu chamei a Folha de 'inho'. Fiz porque precisava de dinheiro, sempre estou precisando de muito dinheiro. Gosto de fazer comercial, não tenho nada contra. Não tenho exclusividade, sou livre. Sento no banheiro e leio os dois jornais.”


 


E onde a “ideologia SS” se faria presente no Vaticano? Responde Zé Celso, que já interpretou o papa na peça Ela, de Jean Genet: “Eu não gosto de papa. Bento XVI é do Grupo Suástica Suástica, ele foi nazista quando criança, se arrependeu e agora é neonazista. Ou seja, continua sendo nazista. A maioria da humanidade não tem o menor interesse na castidade, em se casar uma vez só, em ter só uma experiência sexual na vida. Eu gostava do outro papa (João Paulo II), porque tinha talento, tinha sido ator, era ótimo ator”.


 


Berço político


 


A proximidade de Zé Celso com a política vem desde os primórdios, como relata Renan Tavares no livro recém-lançado Teatro Oficina de São Paulo – Seus Dez Primeiros Anos (1958-1968), que analisa as montagens iniciais em contraste com os acontecimentos políticos da época.


 


A primeira montagem de O Rei da Vela (1967), de Oswald de Andrade, abriu terreno para a eclosão do movimento tropicalista e chamou a atenção do regime militar para o teatro da rua Jaceguai.


 


A peça seguinte, Roda Viva (1968), de Chico Buarque, motivou ataque do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) ao grupo. Hoje, Zé Celso é um dos que pedem indenização por tortura e danos econômicos sofridos. “Sou cardíaco, preciso pagar uma cirurgia que me custou R$ 70 mil”, justifica.


 


O tombamento do Oficina, em 1983, foi concedido pelo governo peemedebista de Franco Montoro. Egresso daquele governo, o hoje tucano José Serra foi ator de Vento Forte para Papagaio Subir, texto que Zé Celso escreveu aos 20 anos e pretende reencenar neste ano. Atualmente, o Oficina conta com o patrocínio da Petrobras para editar em DVD toda a saga de Os Sertões (assim como os espetáculos Cacilda, As Bacantes, Ham-Let e Boca de Ouro, que devem ser lançados pela gravadora Trama).


 


Admirador de Getulio Vargas, o diretor classifica Lula como “um político e negociador extraordinário”. “Já escrevi uma carta a ele, dizendo que, durante muito tempo, ele só se admitia como operário do ABC. Depois se reconheceu pernambucano, mas eu disse que faltava ele se reconhecer caeté, da tribo que devorou o bispo Sardinha. É claro que ele é caeté!”


 


Ambiciona o intermédio do governo Lula para fazer contato com o presidente venezuelano, Hugo Chávez. “Tenho muita vontade de falar com ele, quero propor de bancar uma excursão de Os Sertões pelo 'eixo do mal' latino-americano. Quero ir à Bolívia, ao Equador, a Cuba, à Guatemala, ao Chile, à Argentina.”


 


Cláudio Lembo


 


Um elo à primeira vista surpreendente é o que o une ao ex-governador Claudio Lembo, do ex-PFL: Zé Celso foi calouro de Lembo na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. Não buscou o diploma até hoje, mas há pouco tempo resolveu solicitar o canudo (o processo está em curso).


 


“Não fui grande amigo do Lembo, mas convivemos. É uma ótima pessoa, tem cultura. Esses aristocratas quatrocentões da São Francisco têm um respeito maior pela cultura, por incrível que pareça. Lembo ri de si mesmo, é a coisa mais linda que uma pessoa pode fazer na vida. Ele é um palhaço, como Silvio Santos, mas Silvio é um palhaço que ainda segura aqui na calça e fala 'é 95% de dinheiro para a organização'.”


 


O ex-governador retribui o elogio: “Zé Celso e eu fomos grandes amigos na escola, com posições diferentes, mas solidários. Era um moço-padrão de Araraquara, de terno e gravata. A escola de direito era pluralista, multicultural, aprendemos muito lá. É um celeiro das histórias mais estranhas, de liberais, fascistas e progressistas”.


 


Confrontado com a suposta dicotomia entre os dois, entre direita e esquerda, Lembo brinca: “Ele é que é da direita, não é? Todos éramos pessoas com uma visão muito liberal do mundo”.


 


As palavras de Lembo ecoam quando Zé Celso fala do sonho de preservação não só do Oficina, mas de todo o Bexiga. “Eles querem demolir tudo e fazer a Las Vegas brasileira, zona hoteleira, zona de jogo, zona de shows, Broadway brasileira. Vão tirar todo aquele povo maravilhoso de lá, e o barato do Bexiga é que é um bairro que ainda tem um povo, apesar do Minhocão que o rasgou em dois. É como andar pela Lapa, no Rio, pelo Pelourinho, em Salvador, ou pelo Recife Velho.”


 


E prossegue, num lamento pela demolição da sinagoga do Bexiga: “Que mania é essa de São Paulo, de querer demolir tudo? Eu sou conservador, nesse sentido, sou um revolucionário conservador”.


 


Uma estranha musa


 


Conservador ou progressista (ou ambos ao mesmo tempo), Zé Celso praticou todo tipo de transgressão no “terreiro eletrônico” do Bexiga, em especial as de natureza sexual e comportamental. Sob a tutela dele, centenas de personalidades artísticas desfilaram pela passarela do Oficina ao longo de 49 anos.


 


Uma delas é Maria Alice Vergueiro, atriz e professora universitária egressa da aristocracia, que há pouco causou furor via internet com o vídeo Tapa na Pantera, que trata com humor e ambigüidade o consumo de maconha.


 


“Quando ele era chamado de decano do ócio, deu uma prova de que o ócio é importante para o artista. Ócio não é preguiça, é um estado latente, de transformação. Zé Celso me inspira até hoje”, afirma Maria Alice. O decano do Oficina retribui: “Vi o vídeo no YouTube. É ótimo. Ela toca no assunto de uma maneira muito bonita”.


 


Mais reveladora, no entanto, soa uma frase que Zé Celso Martinez Corrêa pronuncia em outro momento da entrevista, em outro contexto, em outro nó do volumoso novelo que embaraça saber teatral e novela de tevê: “Silvio Santos é a minha musa inspiradora”.